Tomas, personagem de A insustentável
leveza do ser, de Milan Kundera, não conhecia a experiência da
paixão. O que ele conhecia eram os prazeres do sexo. Esgotada a
orgia, o seu desejo era se livrar da mulher. A ideia de acordar com
uma mulher ao lado o horrorizava. O seu horror ao amor era tal que
nunca permitia que uma mulher dormisse na sua cama. Encontrava sempre
uma desculpa para se livrar da companheira, levando-a de volta à
casa dela. Ele se parecia com o sultão de As mil e uma noites, que,
depois de uma noite de prazeres carnais, quando o sol iluminava o
horizonte, fazia com que a amante fosse decapitada... Era assim que
Tomas agia, como um animal caçador que abandona a caça tão logo
sua fome é satisfeita.
Mas com Tereza tudo foi diferente. Não
que ela tivesse algum traço especial, que a distinguisse das outras.
Não era mais bonita. Por que Tomas a amou e deixou que ela passasse
a noite na cama dele? Por mais que a examinasse, nada encontrava nela
que pudesse ser apontado como a razão do seu amor. Eles se conheciam
por um tempo tão curto! Mas, sem razões e contra a sua vontade, o
fato era que ele estava apaixonado por ela.
Sua aventura com Tereza havia começado
exatamente onde terminavam suas aventuras com as outras mulheres. Ela
acontecera do outro lado do impulso que o levava às conquistas.
Conhecera Tereza acidentalmente, num bar de uma cidadezinha do
interior. Dissera-lhe, quase como brincadeira, que o procurasse se
fosse à capital. E lhe dera o seu endereço. Tereza chegou à
capital doente, sentindo-se perdida. Não tinha para onde ir. Foi
isso que a levou a procurar Tomas. E foi aí que a história de amor
começou.
Ela ardia em febre. Ele não podia fazer
com ela aquilo que fazia com as outras. Não podia levá-la de volta
para casa, porque ela não tinha casa. Ajoelhado à sua cabeceira,
“ocorrera-lhe a ideia de que ela viera para ele numa cesta sobre as
águas”.
Agora, a distância, pensava sobre as
razões do seu amor e fazia, sem que disso se desse conta, a insólita
pergunta de Santo Agostinho: “o que é que amo quando amo Tereza?”.
Tudo se tornou claro de repente. Ele ficou comovido pela fragilidade
de Tereza adormecida – criança amedrontada, chegando aos seus
braços com um pedido de socorro.
A mulher não resiste à voz do que
chama sua alma amedrontada; o homem não resiste à mulher cuja alma
se torna atenta à sua voz. Parece que existe no cérebro uma zona
específica, que poderíamos chamar de memória poética, que
registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à
nossa vida. Desde que Tomas conhecera Tereza, nenhuma outra mulher
tinha o direito de deixar a marca, por efêmera que fosse, nessa zona
do seu cérebro.
Agora, na memória poética de Tomas,
aquela cena permanecia imóvel, imperturbável, fora do tempo. Era
uma parte da sua alma. Não morreria jamais.
“O que é que amo quando te amo?”
Tomas amava Tereza porque amava nela uma outra coisa: aquela cena que
repentinamente brilhara em sua imaginação. Na cena, Tereza não era
Tereza; era uma criança abandonada, levada pelas águas de um rio.
E, de repente, ele deixou de ser Tomas, o caçador – tornou-se um
homem forte, que tomava aquela criança nos braços. Tereza poderia
deteriorar-se ou morrer. Mas a cena permaneceria inalterada, suspensa
na memória poética, como objeto de amor.
Amamos a bela cena antes de amar a
pessoa. Amamos a pessoa porque ela completa a bela cena. Por isso
Santo Agostinho, antecedendo os versos de Fernando Pessoa, escreveu
em suas Confissões: “antes que te conhecesse eu já te amava”.
Somos amantes antes de nos encontrar com a mulher ou com o homem que
será o objeto do nosso amor. A alma é uma coleção de belos
quadros adormecidos, seus rostos envoltos pelas sombras. Sua beleza é
triste e nostálgica porque, sendo moradores da alma ao lado dos
sonhos, eles não existem do lado de fora. Vez por outra, entretanto,
defrontamo-nos com um rosto – ou apenas uma voz, um olhar, um gesto
com a mão... – que, sem razões, ilumina um dos quadros que estava
no escuro. Somos então possuídos pela certeza de que esse rosto que
os olhos veem é o mesmo que está no quadro que mora nas sombras da
alma. O corpo estremece. A paixão está nascendo.
Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado
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