segunda-feira, 26 de julho de 2021

Vivendo com o idioma

Nasci em 1904. Em 1921 foi publicado um folheto com um de meus poemas. No ano de 1923 foi editado meu primeiro livro, Crepusculario. Estou escrevendo estas rememorações em 1973. Passaram-se já 50 anos desde o momento emocionante em que um poeta sente os primeiros vagidos da criatura impressa, viva, agitada e desejosa de chamar a atenção como qualquer outro recém-nascido.
Não se pode viver toda uma vida com um idioma, vendo-o em sua maior dimensão, explorando-o, alisando-lhe o pêlo e a barriga sem que esta intimidade faça parte do organismo. Assim aconteceu comigo em relação à língua espanhola. A língua falada tem outras dimensões; a língua escrita adquire uma dimensão imprevista. O uso do idioma como veste ou como a pele no corpo, com suas mangas, suas emendas, suas transpirações e suas manchas de sangue e suor, revelam o escritor. Isto é o estilo. Encontrei minha época transtornada pelas revoluções da cultura francesa. Sempre me atraíram mas de certa maneira não me assentavam como traje. Huidobro, poeta chileno, tomou a seu cargo as modas francesas que ele adaptou à sua maneira de existir e de se expressar de forma admirável. Às vezes me pareceu que superava seus modelos. Alguma coisa assim aconteceu, em escala maior, com a irrupção de Rubén Darío na poesia hispânica. Mas Rubén Darío foi um grande elefante sonoro que rompeu todos os cristais de uma época do idioma espanhol para que entrasse em seu circuito o ar do mundo. E entrou.
Entre americanos e espanhóis, o idioma nos separa algumas vezes. Mas sobretudo é a ideologia do idioma a que se parte em dois. A beleza congelada de Góngora não convém a nossas dimensões e não há poesia espanhola, nem a mais recente, sem o travo, sem a opulência gongórica. As camadas estratificadas da América são de pedra poeirenta, de lava triturada, de argila com sangue. Não sabemos lapidar o cristal. Nossos preciosistas soam vazios. Uma só gota de vinho de Martín Fierro ou do mel turvo de Gabriela Mistral os põe em seu devido lugar: bem arrumadinhos no salão como jarrões de flores de outra parte.
O idioma espanhol tornou-se de ouro depois de Cervantes, adquiriu uma elegância cortesã, perdeu a força selvagem que trazia de Gonzalo de Berceo, do Arcipreste, perdeu a paixão genital que ardia em Quevedo. O mesmo aconteceu na Inglaterra, na França, na Itália. O desregramento de Chaucer e de Rabelais foi castrado. A petrarquização preciosista fez brilhar as esmeraldas e os diamantes mas a fonte da grandeza começou a se extinguir.
Este manancial anterior tinha que ver com o homem inteiro, com sua grandeza, sua riqueza e seu transbordamento.
Pelo menos esse foi meu problema ainda que eu não colocasse nesses termos. Se minha poesia tem algum significado, é essa tendência espacial, ilimitada, que não se satisfaz em um lugar só. Minha fronteira tinha que ultrapassar a mim mesmo, não me tinha confinado no enquadramento de uma cultura distante. Eu tinha que ser eu mesmo, esforçando-me por me estender como as próprias terras, onde me tocou nascer. Outro poeta deste mesmo continente me ajudou neste caminho. Refiro-me a Walt Whitman, meu companheiro de Manhattan.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Nenhum comentário:

Postar um comentário