sexta-feira, 23 de julho de 2021

Diálogo imaginário

Sei de um homem que está fazendo cento e onze anos, e fui entrevistá-lo.
Como é: cento e onze?
Você é que está contando por mim. Eu não conto.
E nem parece que é tanto assim. Puxa vida, o tempo não o mudou em nada: voz, olhar, o bigode caído. A seriedade.
Bem, agora já não poderia mudar.
Pois olhe, pra mim o senhor — você, se me dá licença — não mudou nunca, sabe?
Mudei. O menino era um, o homem ficou sendo de outra madeira.
O fato é que você me deu sempre uma tal impressão de força!
Não terá sido defeito de visão de sua parte? Em todo caso, admito que procurei sempre cultivar, entre minhas fraquezas, um princípio de energia.
Isso. Quando o conheci (e conheci já tarde, gostaria tanto de termos convivido mais cedo), você era pura energia. Às vezes um pouco… um pouco dura, não?
Engraçado. Você nunca percebeu como essa dureza, às vezes, senão sempre, era contra mim mesmo. Contra o menino que também fui, fraco no campo dos fortes.
A gente nunca percebe direito as coisas, face a face com elas.
Se percebesse, mesmo assim não as aceitaria.
Quem sabe? Pode ser que uma palavra…
A palavra é justamente o que dificulta a percepção.
Um gesto.
O mais difícil é esboçar um gesto, o movimento de mão que anule a palavra errada.
Então, como é que a gente se entende?
A gente só se entende, isto é, só prepara o tardio entendimento, pela oposição, pelo contraste, pelo choque.
Não haverá um caminho menos cruel para isso?
Você sabe perfeitamente que não. E que não é a diferença de naturezas que produz o choque. É a identidade.
Tem razão. Forças do mesmo tipo; desencadeadas em duas pessoas, agem em sentido contrário.
Até se fundirem, pacificadas.
Exaustas?
Não. O resultado da fusão não é o cansaço. É a paz, uma paz diáfana, um silêncio.
Ela habita em você?
Não propriamente em mim. Na imagem de mim em você.
Então, essa energia que se derramou por sua vida não encontra repouso?
Estará latejando sempre, mas o conflito cessou. Veio uma hora mansa, infindável, de que está ausente qualquer ideia de conflito. E em você?
Também sinto que essa hora se aproxima, ou por outra, sei agora que ela soa num relógio diferente de todos, e soar não é bem a expressão: ela pulsa.
Parece que você tem medo.
Medo suportável, tornado menor pela capacidade de aceitação, que se acentua com a capacidade de renúncia. Como você resolveu este problema?
Sozinho, sem os recursos de que vocês hoje dispõem. Não havia análise para a angústia. Nem comprimidos extasiantes. A luta era entre um homem e o resto do mundo. Não tive aliados.
Que beleza, a sua vitória!
Como se houvesse vitória. Houve cumprimento de tarefa, apenas.
Devo ter perturbado um pouco.
A perturbação fazia parte da tarefa. Todas as perturbações.
Eu via que perturbava, sabe? e era como se no fundo de mim sentisse necessidade de me atritar. Hoje estou calmo.
Tanto quanto pensa que está? Veja bem. Por que me interroga?
Pelo gosto de conversarmos.
Não. Porque falta ainda alguma coisa a escavar, a descobrir. No dia em que você a encontrar, não me perguntará mais nada.
Que coisa seria essa? Nos entendemos tão bem.
Mas a si mesmo, você se entende completamente?
Bem, eu…
Chega por hoje. É a sua vez de descansar, entrevistador.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

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