Sei de um homem que está fazendo cento e
onze anos, e fui entrevistá-lo.
— Como é: cento e onze?
— Você é que está contando por mim.
Eu não conto.
— E nem parece que é tanto assim. Puxa
vida, o tempo não o mudou em nada: voz, olhar, o bigode caído. A
seriedade.
— Bem, agora já não poderia mudar.
— Pois olhe, pra mim o senhor — você,
se me dá licença — não mudou nunca, sabe?
— Mudei. O menino era um, o homem ficou
sendo de outra madeira.
— O fato é que você me deu sempre uma
tal impressão de força!
— Não terá sido defeito de visão de
sua parte? Em todo caso, admito que procurei sempre cultivar, entre
minhas fraquezas, um princípio de energia.
— Isso. Quando o conheci (e conheci já
tarde, gostaria tanto de termos convivido mais cedo), você era pura
energia. Às vezes um pouco… um pouco dura, não?
— Engraçado. Você nunca percebeu como
essa dureza, às vezes, senão sempre, era contra mim mesmo. Contra o
menino que também fui, fraco no campo dos fortes.
— A gente nunca percebe direito as
coisas, face a face com elas.
— Se percebesse, mesmo assim não as
aceitaria.
— Quem sabe? Pode ser que uma palavra…
— A palavra é justamente o que
dificulta a percepção.
— Um gesto.
— O mais difícil é esboçar um gesto,
o movimento de mão que anule a palavra errada.
— Então, como é que a gente se
entende?
— A gente só se entende, isto é, só
prepara o tardio entendimento, pela oposição, pelo contraste, pelo
choque.
— Não haverá um caminho menos cruel
para isso?
— Você sabe perfeitamente que não. E
que não é a diferença de naturezas que produz o choque. É a
identidade.
— Tem razão. Forças do mesmo tipo;
desencadeadas em duas pessoas, agem em sentido contrário.
— Até se fundirem, pacificadas.
— Exaustas?
— Não. O resultado da fusão não é o
cansaço. É a paz, uma paz diáfana, um silêncio.
— Ela habita em você?
— Não propriamente em mim. Na imagem
de mim em você.
— Então, essa energia que se derramou
por sua vida não encontra repouso?
— Estará latejando sempre, mas o
conflito cessou. Veio uma hora mansa, infindável, de que está
ausente qualquer ideia de conflito. E em você?
— Também sinto que essa hora se
aproxima, ou por outra, sei agora que ela soa num relógio diferente
de todos, e soar não é bem a expressão: ela pulsa.
— Parece que você tem medo.
— Medo suportável, tornado menor pela
capacidade de aceitação, que se acentua com a capacidade de
renúncia. Como você resolveu este problema?
— Sozinho, sem os recursos de que vocês
hoje dispõem. Não havia análise para a angústia. Nem comprimidos
extasiantes. A luta era entre um homem e o resto do mundo. Não tive
aliados.
— Que beleza, a sua vitória!
— Como se houvesse vitória. Houve
cumprimento de tarefa, apenas.
— Devo ter perturbado um pouco.
— A perturbação fazia parte da
tarefa. Todas as perturbações.
— Eu via que perturbava, sabe? e era
como se no fundo de mim sentisse necessidade de me atritar. Hoje
estou calmo.
— Tanto quanto pensa que está? Veja
bem. Por que me interroga?
— Pelo gosto de conversarmos.
— Não. Porque falta ainda alguma coisa
a escavar, a descobrir. No dia em que você a encontrar, não me
perguntará mais nada.
— Que coisa seria essa? Nos entendemos
tão bem.
— Mas a si mesmo, você se entende
completamente?
— Bem, eu…
— Chega por hoje. É a sua vez de
descansar, entrevistador.
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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