Quando
se sabe pouco se imagina muito. O Riobaldo sabia disso e advertia: “O
senhor deve ficar prevenido: esse povo diverte por demais com a
baboseira, dum traque de jumento formam tufão de ventania. Por gosto
de rebuliço. Querem-porque-querem inventar maravilhas glorionhas,
depois eles mesmos acabam temendo e crendo. Parece que todo o mundo
carece disso. Eu acho...”.
Na
minha roça, tão longe do sertão do Riobaldo, era assim mesmo. O
que confirma o dito: todo mundo carece disso... Os homens se reuniam
ao fim do dia pra contar causos. Não era pra saber. Era pra
imaginar. Brincadeira que se levava a sério. As coisas inventadas
têm mais força que as não inventadas. Todo mundo sabia que o
contador de causos estava mentindo. Mas seria falta de educação
dizer a ele que as coisas que ele contava eram invenção. Assim,
todo mundo fazia de conta que ele não estava mentindo. Tinha de
fazer de conta, senão não tinha graça, não dava medo, não dava
assombro. Depois de um causo portentoso, a coisa certa a se dizer
era: “Mas isso não é nada...” . Aí aquele que disse começava
a contar as suas maravilhas inventadas. Ninguém se interessava por
fatos verdadeiros. Fato verdadeiro não dá espanto. O espanto mora
no inventado. Os fatos verdadeiros só servem para neles se amarrar a
fantasia, feito prego pra se pendurar um quadro. O prego ninguém vê.
Os homens da cidade diziam que eram mentiras. Pois eu digo que ali
estava o nascedouro do realismo fantástico. Bem diz o Manoel de
Barros que o que não existe é mais bonito do que o que existe.
Dentre todos os contadores de “causos” lá na roça, o mais
imaginoso era o Zé Sapé. Foi assim que, numa roda, depois de um
“causo”, ele disse “mas isso não é nada” e passou a relatar
o que lhe acontecera. Relatou, com a gravidade que convém a uma
pessoa que só diz verdades. Era depois do almoço. O sol estava no
alto do céu, queimando. Deu-lhe uma dor de barriga. Procurou um
lugar adequado para obrar. Não podia ter mato alto, porque o mato
alto espeta e faz cócegas no traseiro. E tinha de agachar na direção
da subida do morro, pra obra não escorrer na direção do pé.
Apertado pela necessidade, nem olhou direito. Desafivelou o cinto,
baixou as calças, agachou e desapertou-se. Terminada a obra, feita a
limpeza com um chumaço de capim, levantou as calças, apertou o
cinturão... Aí ele explicou: “Todo mundo gosta de vê o que feiz.
Eu virei pra vê. E num é que eu tinha obrado bem na cabeça de uma
urutu que tava durmino, aquentano o sor di meio-dia? E a danada num
acordô...” .
Acho
que, se o Zé Sapé tivesse contado o seu “causo” aos autores
bíblicos, o texto sagrado seria diferente. Lá, onde se diz que a
mulher pisaria na cabeça da serpente e a serpente lhe morderia o
calcanhar, estaria escrito: “E o homem obrará na cabeça da urutu
e a urutu não morderá o seu traseiro”…
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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