domingo, 27 de junho de 2021

Velas

Perde-se no tempo a origem dos barcos a vela. Os mais antigos de que se tem notícia datam de quatro mil anos antes de Cristo, e resquícios ou registros foram encontrados em muitas partes do planeta, no Pacífico, no Índico, no Mediterrâneo ou no Mar do Norte.
Dentre as muitas tarefas para manter uma embarcação a vela — a limpeza, a mastreação, o cuidado com a quilha, o pastilhão, o leme, as manobras, o treinamento, a alimentação, o conhecimento das estrelas —, a dobra eficiente e rápida das velas é uma das mais necessárias para o ofício de um marinheiro.
Não é um trabalho fácil. Nas embarcações mais antigas, especialmente, havia tantas velas, seus formatos eram tão variados e a necessidade de manejá-las ao longo de uma viagem tão essencial, que o cuidado com sua dobra era habilidade fundamental para uma navegação eficaz. Ser um marinheiro capaz, na Antiguidade, era ter a vida garantida, com comida e abrigo para sempre. Os mestres na arte da dobra dos velames tornavam-se pessoas respeitadas, quando navegar já não lhes era mais possível e faltavam ao seu corpo forças para continuar dobrando.
Não espanta, por isso, que tanto se tenha cantado e elogiado o marinheiro e as embarcações:

Manobra o Timoneiro, a nave se desloca,
E sem nenhuma aragem;
Os marujos se põem a trabalhar nas cordas,
E tal como antes agem;
Instrumentos sem vida tornam-se seus membros(Coleridge)

Vela de seda e cordas de sândalo
Tais como brilham no antigo folclore;
E o canto dos marinheiros,
E a resposta que vem da costa!… (Longfellow — tradução livre)

Ó Capitão! Meu capitão! Nossa terrível viagem se cumpriu,
O Navio cruzou tormentas, é nosso o prêmio pio,
O porto vê-se ao perto os sinos dobram, o povo espera,
Olhos que à quilha firme tornam, desta nave forte e fera;
Mas ó coração, coração!
Ó gotas de vermelho brio,
No convés em que ele dorme,
Deitado morto e frio. (Walt Whitman)

Ou, em Portugal, do mar que, saudoso, pergunta pelo marinheiro que foi para a Terra:

E o espírito do mar pergunta:
Que é feito daquele
Para quem eu guardava um reino puro
De espaços e vazios
De ondas brancas e fundas
e de verde vazio? (Sophia de Mello Breyner Andresen)

O desenrolar da história se dá não pelas vitórias dos imperadores, pelos acordos entre grandes estirpes ou pelas derrotas sofridas pelos menos afortunados, mas a partir dos botões bem ou mal costurados urdidos em noites insones, o grude mais ou menos eficaz dos lacres, as pernas dos mensageiros e as velas mais ou menos bem dobradas pelos marinheiros. Disso dependia a rapidez com que os barcos singravam os mares e, no final das contas, a vitória na batalha, uma transação comercial, o transporte de bens e da princesa prometida.
Entretanto, embora o ofício tenha sido tão cantado, pouco se sabe — ou talvez nada — sobre a relação entre alguns termos do vocabulário especificamente ligado à dobra das velas e algumas palavras importantes de nosso léxico atual.
O encontro consonantal “pl”, cujo som lembra o de um “plic”, “plic” ou o da manipulação de algo macio — e que também pode ser substituído por “fl” —, acabou resultando, em várias línguas, em palavras que remetem ao ato de dobrar: plier, em francês; plesti, em eslavo; plekein, em grego; ou fletir, em português. E era justamente esse um dos gestos mais importantes dos marinheiros, “plier les voiles”, dobrar as velas. As instruções para esse exercício precisavam ser claras e rápidas, ditas com as palavras mais incisivas possíveis. E foi daí que vieram os gritos urgentes durante as tempestades da história da navegação:
Simplificar!
Explicar!
Complicar!
Duplicar!
Aplicar!
Ou, traduzindo: igualar as dobras!; tirar as dobras!; aumentar as dobras!; dobrar mais uma vez ou, mais singelamente, apenas dobrar!
Mas disso ninguém sabe e usam-se essas palavras com significados filosóficos ou abstratos, como se a filosofia, coitada, fosse mais importante do que a dobra das velas.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

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