Perde-se
no tempo a origem dos barcos a vela. Os mais antigos de que se tem
notícia datam de quatro mil anos antes de Cristo, e resquícios ou
registros foram encontrados em muitas partes do planeta, no Pacífico,
no Índico, no Mediterrâneo ou no Mar do Norte.
Dentre
as muitas tarefas para manter uma embarcação a vela — a limpeza,
a mastreação, o cuidado com a quilha, o pastilhão, o leme, as
manobras, o treinamento, a alimentação, o conhecimento das estrelas
—, a dobra eficiente e rápida das velas é uma das mais
necessárias para o ofício de um marinheiro.
Não
é um trabalho fácil. Nas embarcações mais antigas, especialmente,
havia tantas velas, seus formatos eram tão variados e a necessidade
de manejá-las ao longo de uma viagem tão essencial, que o cuidado
com sua dobra era habilidade fundamental para uma navegação eficaz.
Ser um marinheiro capaz, na Antiguidade, era ter a vida garantida,
com comida e abrigo para sempre. Os mestres na arte da dobra dos
velames tornavam-se pessoas respeitadas, quando navegar já não lhes
era mais possível e faltavam ao seu corpo forças para continuar
dobrando.
Não
espanta, por isso, que tanto se tenha cantado e elogiado o marinheiro
e as embarcações:
Manobra
o Timoneiro, a nave se desloca,
E
sem nenhuma aragem;
Os
marujos se põem a trabalhar nas cordas,
E
tal como antes agem;
Instrumentos
sem vida tornam-se seus membros…
(Coleridge)
Vela
de seda e cordas de sândalo
Tais
como brilham no antigo folclore;
E
o canto dos marinheiros,
E
a resposta que vem da costa!…
(Longfellow
— tradução livre)
Ó
Capitão! Meu capitão! Nossa terrível viagem se cumpriu,
O
Navio cruzou tormentas, é nosso o prêmio pio,
O
porto vê-se ao perto —
os
sinos dobram, o povo espera,
Olhos
que à quilha firme tornam, desta nave forte e fera;
Mas
ó coração, coração!
Ó
gotas de vermelho brio,
No
convés em que ele dorme,
Deitado
morto e frio. (Walt
Whitman)
Ou, em Portugal, do
mar que, saudoso, pergunta pelo marinheiro que foi para a Terra:
E
o espírito do mar pergunta:
—
Que
é feito daquele
Para
quem eu guardava um reino puro
De
espaços e vazios
De
ondas brancas e fundas
e
de verde vazio? (Sophia
de Mello Breyner Andresen)
O desenrolar da
história se dá não pelas vitórias dos imperadores, pelos acordos
entre grandes estirpes ou pelas derrotas sofridas pelos menos
afortunados, mas a partir dos botões bem ou mal costurados urdidos
em noites insones, o grude mais ou menos eficaz dos lacres, as pernas
dos mensageiros e as velas mais ou menos bem dobradas pelos
marinheiros. Disso dependia a rapidez com que os barcos singravam os
mares e, no final das contas, a vitória na batalha, uma transação
comercial, o transporte de bens e da princesa prometida.
Entretanto, embora
o ofício tenha sido tão cantado, pouco se sabe — ou talvez nada —
sobre a relação entre alguns termos do vocabulário especificamente
ligado à dobra das velas e algumas palavras importantes de nosso
léxico atual.
O
encontro consonantal “pl”, cujo som lembra o de um “plic”,
“plic” ou o da manipulação de algo macio — e que também pode
ser substituído por “fl” —, acabou resultando, em várias
línguas, em palavras que remetem ao ato de dobrar: plier,
em francês; plesti,
em eslavo; plekein,
em grego; ou fletir,
em português. E era justamente esse um dos gestos mais importantes
dos marinheiros, “plier
les voiles”,
dobrar as velas. As instruções para esse exercício precisavam ser
claras e rápidas, ditas com as palavras mais incisivas possíveis. E
foi daí que vieram os gritos urgentes durante as tempestades da
história da navegação:
— Simplificar!
— Explicar!
— Complicar!
— Duplicar!
— Aplicar!
Ou,
traduzindo: igualar
as dobras!;
tirar
as dobras!;
aumentar
as dobras!;
dobrar
mais uma vez ou,
mais singelamente, apenas dobrar!
Mas disso ninguém
sabe e usam-se essas palavras com significados filosóficos ou
abstratos, como se a filosofia, coitada, fosse mais importante do que
a dobra das velas.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
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