Dos filmes e livros às sondas de
exploração da NASA, Marte é sinônimo de fascínio e mistério.
Haverá vida no planeta vermelho? O planeta Marte está sempre nas
manchetes. Recentemente, foi a descoberta de água líquida fluindo
na sua superfície, e mais um tanto acumulada em crateras. A lista de
filmes sobre Marte ou marcianos é longa. O filme de Ridley Scott,
Perdido em Marte, baseado no livro de Andy Weir, lotou cinemas pelo
mundo afora. Parece que o planeta vermelho não quer ser ofuscado
pela Lua, especialmente agora que o bilionário Elon Musk diz que
quer colonizar o planeta com sua empresa SpaceX.
Na mitologia greco-romana, Marte é o
deus da guerra, guardião dos soldados e dos fazendeiros. A conexão
com a guerra pode ser traçada aos egípcios. Os gregos o chamavam de
Ares, um dos deuses do Olimpo, filho de Zeus e Hera. A cor
avermelhada de Marte, plenamente visível a olho nu, inspira certo
temor, dando ao planeta um ar de mistério. Que tipo de criatura pode
habitar um mundo que aparenta ser coberto de sangue? Com a astronomia
restrita a observações a olho nu até 1609, pouco foi aprendido
sobre Marte até então. Entre 1601 e 1609, o astrônomo alemão
Johannes Kepler usou o planeta para deduzir que sua órbita tinha a
forma de uma elipse, e não a de um círculo perfeito. Talvez a
inspiração de Kepler tenha vindo do impulso guerreiro atribuído a
Marte, refletido na sua órbita um tanto excêntrica (no sentido de
não circular).
O astrônomo bem sabia que sua visão
ruía milênios de conhecimento astronômico, e que forçaria uma
nova atribuição de imperfeição aos desenhos celestes. {14} Já
bem na era dos telescópios, e aproveitando a aproximação de Marte
durante um período de ótima visibilidade em 1877, o astrônomo
italiano Giovanni Schiaparelli observou certos detalhes do relevo
marciano que descreveu usando a palavra italiana “canali”. Mesmo
que Schiaparelli estivesse se referindo às longas depressões e
sulcos na superfície de Marte, algumas pessoas acreditaram que
houvesse descoberto canais escavados, que cruzavam a superfície do
planeta em padrões extremamente regulares.
Na imaginação popular, os canais logo
se transformaram em vias artificiais, construídos por uma antiga e
sábia civilização, dirigindo água dos polos aos centros urbanos
das áreas equatoriais, castigadas por terríveis secas. Centenas de
canais foram “observados” e batizados, mesmo se revelados apenas
através de observações munidas de telescópios. Estranhamente, as
fissuras recusavam-se a aparecer em fotografias tiradas com os mesmos
telescópios. Astrônomos ofereceram várias explicações para essa
situação um tanto peculiar, argumentando que técnicas fotográficas
precisam de um longo período de exposição, tornando-as, assim,
mais sensíveis a flutuações térmicas na atmosfera. Segundo eles,
essas flutuações comprometem a qualidade das imagens fotográficas,
apagando qualquer traço de existência dos canais.
Algo semelhante ocorre quando viajamos em
estradas com o asfalto aquecido pelo Sol e observamos imagens
distorcidas à nossa frente. Astrônomos de excelente reputação
acreditaram com entusiasmo na existência dos extensos canais
marcianos. Entre eles, o milionário e astrônomo amador americano
Percival Lowell ficou fascinado com a possibilidade de vida
inteligente em Marte. Em 1895, Lowell publicou um livro expondo suas
ideias com grande convicção e autoridade. Usando sua fortuna
pessoal, fundou um observatório em Flagstaff, no estado do Arizona,
inicialmente dedicado exclusivamente a observar Marte. Não é por
coincidência que H. G. Wells publicou seu livro A Guerra dos Mundos
em 1898, um dos grandes clássicos da ficção científica, que conta
a história de uma invasão marciana.
No livro, Wells usa os marcianos como
metáfora para o futuro da humanidade, dominada pelos grandes
impérios do final do século XIX (Austro-Húngaro, Otomano,
Britânico, a América do Norte emergente...). Da mesma forma que
duas espécies inteligentes não podem coexistir no mesmo planeta,
uma conflagração entre os grandes impérios seria inevitável no
futuro próximo. (Que se materializou, profeticamente, com a Primeira
Guerra Mundial.) Os marcianos, forçados a abandonar o seu mundo,
haviam criado terríveis máquinas de destruição, um aparato bélico
que fazia das nossas armas brinquedos de criança. Não foi nossa
inteligência ou estratégia que derrotou os invasores, mas a
Natureza.
Wells, imbuído dos ensinamentos de
Darwin e sua teoria da evolução, sabia que qualquer espécie,
inteligente ou não, só está bem adaptada ao ambiente onde vive. Os
marcianos não tinham os anticorpos necessários para se defender
contra os nossos micróbios. Inspirado pelo livro de H. G. Wells,
ainda mais dramático foi o programa de rádio criado e produzido em
1938 pelo genial Orson Welles, alertando os habitantes do estado de
Nova Jersey para uma invasão de marcianos. A Guerra dos Mundos
tornou-se “real” logo antes da Segunda Guerra Mundial. A série
de transmissões, na forma de noticiários urgentes, causou
verdadeiro pânico na população local.
A maioria das pessoas acreditou
passivamente nos noticiários, sem questionar a existência de uma
civilização tecnologicamente avançada em Marte, aparentemente com
péssimas intenções com relação à Terra e seus habitantes. Essa
credibilidade só foi possível porque o planeta vermelho ocupava já
um local privilegiado na psique coletiva como um mundo habitado por
seres mais avançados, cuja índole destruidora causaria o nosso fim.
Poucos entenderam que o que viam nos marcianos era um reflexo de nós
aqui na Terra, uma espécie que, movida pela ganância e pela sede de
poder, cria meios terríveis de autodestruição.
As duas versões do livro de Wells para o
cinema – a primeira, de 1953, dirigida por Byron Haskin, e a
segunda, de 2005, dirigida por Steven Spielberg – adaptam a
narrativa para a realidade social da época. A versão de 1953 ecoa a
era atômica e a Guerra Fria. Os marcianos querem aniquilar os
humanos, sem, aparentemente, um motivo óbvio. Na versão de 2005, o
foco é a desintegração da família e o medo da ameaça terrorista.
Os monstros que vêm de Marte são os monstros que carregamos em nós
mesmos.
Durante as décadas de 1960 e 1970, as
várias sondas espaciais da linha Mariner e Viking provaram
definitivamente que os extensos “canais marcianos” não existem.
Também não existe qualquer traço de uma civilização inteligente
em Marte, no presente ou no passado. Por outro lado, sabemos agora
que o planeta apresenta uma geologia extremamente rica, mesmo se
desértica e com temperaturas muito baixas. Vales e leitos de rios,
vastos sistemas de cânions com mais de 4 mil quilômetros de
extensão, enormes vulcões extintos, tudo isso indica que, no
passado, Marte era um planeta muito diferente do que é hoje, com
muita água e até, quem sabe, clima tropical.
Com as sondas mais recentes, que pousaram
em Marte e exploraram a região vizinha ao seu local de pouso com
pequenos jipes robóticos, ficou claro que o planeta é mesmo um
deserto gelado, semelhante a certas regiões do Oeste americano. Seu
tom avermelhado vem do acúmulo de poeira na superfície, formada por
vários compostos de ferro e oxigênio. Essa poeira é levantada com
frequência em terríveis tempestades de areia, que podem ser vistas
até por telescópio. Apesar de alguns alarmes falsos, a vida não
foi detectada em Marte. Se existe vida lá, será simples,
provavelmente bacteriana.
Difícil que seja na superfície, dado
que a atmosfera de Marte é muito fina, em média com menos de 1% da
densidade da atmosfera terrestre: sem a proteção da atmosfera, a
superfície é eficientemente esterilizada pela radiação
ultravioleta oriunda do Sol. Para piorar, o gás carbônico (o que a
gente exala quando respira) compõe 96% da atmosfera, tornando-a
inviável para seres como nós. Com massa menor do que a Terra, em
Marte o peso dos humanos seria em torno de 40% menor. Bom lugar para
dietas, mas não para passar as férias. Seria uma viagem de pelo
menos seis meses, sem qualquer garantia de volta. Missões recentes
confirmaram a presença de água líquida em certas encostas de
Marte.
Estrias escuras em terreno seco indicam a
presença de água, semelhante ao que ocorre com o concreto, que
escurece quando molhado. A alta quantidade de vários tipos de sais
na água faz com que permaneça líquida mesmo a baixas temperaturas,
no caso em torno de -30 graus Celsius. Infelizmente, essa alta
salinidade também dificulta a existência de vida, semelhante ao que
ocorre no Mar Morto em Israel e, mais dramaticamente, na lagoa de Don
Juan, na Antártica, com salinidade 9,6 vezes mais elevada que no Mar
Morto.
Mesmo que a possibilidade de a vida
existir nessas condições seja baixa, só saberemos se alguma
criatura pode sobreviver nessas condições extremas se tivermos a
oportunidade de investigar a área diretamente. Apesar de parecer uma
decisão simples, enviar uma sonda para essas regiões é um processo
não só caro como complexo. O maior problema é a possibilidade de
contaminação, isto é, de a própria sonda levar consigo criaturas
terrestres, bactérias ou vírus. Certamente, numa questão dessa
grandeza não queremos ser enganados, especialmente se a vida
descoberta em Marte for idêntica à encontrada aqui, o que seria
muito suspeito. Não há dúvida de que a descoberta de vida
extraterrestre seria uma das maiores notícias de todos os tempos.
Contemplar a existência de outras formas de vida é contemplar a
natureza de nossa própria existência como seres humanos.
Até que ponto somos únicos e especiais?
Sabemos hoje que apenas em nossa galáxia existem em torno de 250
bilhões de estrelas, e que a maioria delas têm planetas girando à
sua volta. Devemos, também, incluir as luas, que são potencialmente
plataformas para a vida. Isso significa que existem trilhões de
mundos apenas em nossa galáxia, cada qual com sua própria
composição e história. Se as leis da física e da química são as
mesmas nesses mundos – e sabemos que são –, fica difícil
imaginar que somos o único planeta com vida.
A probabilidade de vida extraterrestre é
alta, mesmo se limitarmos nossa busca à Via Láctea e a criaturas
semelhantes a nós, com química baseada em carbono e dependendo de
água líquida. Astrônomos que trabalham nessa área – chamada de
astrobiologia – especulam que teremos indicação indireta de que a
vida existe em outro planeta (fora do sistema solar) em duas ou três
décadas. Essa “detecção” se dará através da análise da
composição da atmosfera do planeta, que, otimisticamente, teria
gases associados à presença de vida, como oxigênio e ozônio. Vale
lembrar, no entanto, que detectar vida não é o mesmo que detectar
vida inteligente. Existe uma diferença enorme entre as duas coisas,
a vida inteligente sendo certamente muito mais rara. (Veja ensaio
anterior, “A questão alienígena”.)
A vida existe na Terra há pelo menos 3,5
bilhões de anos. Em números arredondados, durante os primeiros 3
bilhões de anos, a vida aqui consistia apenas em seres unicelulares.
A complexidade dos dinossauros veio muito depois. Nós estamos aqui
apenas há 200 mil anos, resultado de uma série de mutações
genéticas e acidentes cósmicos. A vida não é como uma semente,
que brota e vai dar numa grande árvore. A vida não tem um plano
final. A existência de inteligência é a exceção e não a regra.
Essa revelação da ciência moderna põe nosso medo dos marcianos
num outro patamar, decididamente o da ficção científica. Voltando
à obra de H. G. Wells, é melhor tomá-la como metáfora dos perigos
que nossa espécie confronta no presente e no futuro próximo. Numa
era em que a automação cega e a distância entre nós e o resto da
vida em nosso planeta aumentam impunemente, a raridade da vida
deveria ressoar com uma nova identidade para a humanidade, guardiões
da Natureza num Universo profundamente hostil à vida. É hora de
repensar nossa importância e raridade, tomando o destino da vida e
do nosso planeta em nossas mãos.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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