terça-feira, 29 de junho de 2021

O que faz um escritor

Leio no jornal uma entrevista do autor de Cem anos de solidão. Só que seu nome é Gabriel García Márquez e não Marques, como saiu publicado.
Não que eu seja lá muito cioso dessas coisas, pelo contrário: meus lapsos ortográficos costumam ser bem mais graves que uma simples troca do Z pelo S. Fixei na memória a grafia certa do nome do escritor, não só por ter sido com Rubem Braga o seu primeiro editor no Brasil, mas principalmente por causa daquela sensacional entrevista sobre ele, que dei na época a uma estagiária de um jornal do Rio.
Me mandaram fazer com você uma entrevista sobre o marquês – e ela foi ligando logo o gravador.
Que marquês? – estranhei.
Esse que vocês editaram.
Não editamos nenhum marquês, que eu saiba.
O autor desse best-seller de vocês, Cem anos de perdão.
De solidão.
Ou isso: de solidão. Ele não é marquês?
Não. Ele não é marquês. O nome dele é Gabriel García MÁRQUEZ. Com z no fim. Se duvidar, é capaz de ter até o acento no A.
Então é isso. Foi confusão minha – e ela não se deu por achada, muito menos por perdida, sempre empunhando um microfone junto ao meu nariz. – Por que é que o livro dele está fazendo tanto sucesso?
Porque é um livro muito bom.
Foi por isso que vocês publicaram?
Respirei fundo:
Por isso o que, minha filha? Por ser muito bom?
Ela me olhou como se estivesse entrevistando uma toupeira:
O que eu estou querendo saber é por que vocês publicaram o livro dele.
Porque nos foi recomendado como sendo um livro muito bom.
Recomendado por quem?
Pelo Neruda.
Quem?
Pablo Neruda. Quando ele esteve no Rio pela última vez, falou com o Rubem que se tratava do romance mais importante em língua espanhola desde Dom Quixote.
Quem é esse?
Esse quem? O Rubem?
Não: o outro.
Dom Quixote?
Não: esse cara que você falou antes. O que recomendou o livro.
Resolvi deixar cair:
Você vai me desculpar, minha filha, mas não dá. A entrevista fica para outra vez, quem sabe. É muita honra para um pobre marquês, mas infelizmente... Ou Márquez, se você não se incomoda. No mais, muito obrigado.
Eu é que agradeço!
Ela desligou o gravador, com ar satisfeito, despediu-se e foi embora.

Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula

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