Eu era menino ainda quando o piano velho
foi removido para o porão, cedendo lugar ao novo que meu pai
comprara para minha irmã Luisa, excelente pianista. Por que não
venderam o outro logo, não sei dizer; minha mãe talvez se
impressionasse com a leitura de um conto de Aníbal Machado, uma de
suas histórias prediletas, que narra as agruras de uma família
tentando desfazer-se de um piano velho como o nosso.
E no porão ele ficou, para tornar-se
minha exclusiva propriedade: esgotado o repertório de brincadeiras
no fundo do quintal, ou por esquivança à companhia de outros
meninos, ia sentar-me diante de suas teclas e ficava brincando
sozinho de fazer ruído com notas desafinadas.
Tanto bastou para que suspeitassem em mim
uma vocação musical. Suspeita bastante equívoca, de resto;
poderiam ter suspeitado igual vocação para a brincadeira, para o
ruído ou para a solidão. Então me fizeram aluno de dona Abília,
professora de piano. Ao fim de uma semana fugi para sempre ao
suplício das aulas, depois de corresponder em precocidade ao que ela
esperava de mim: aprendi a tocar “Linda borboleta” com as duas
mãos e mais de uma vez beijei a netinha dela num canto escuro da
varanda.
Um dia o piano velho desapareceu do
porão, e me tornei homem, deixando para trás minhas secretas
aptidões musicais.
Mas a ideia de aprender a tocar sempre me
acompanhou. E se tornou mesmo uma constante de minha prosápia,
quando o assunto era abordado numa roda de amigos e eu declarava,
como que casualmente, que “sempre tive certo jeito”, era uma pena
que não me houvesse dedicado.
“Pois então que se dedique!” – era
o que parecia dizer o olhar de minha filha, anos mais tarde,
estendendo-me a chave amarrada com um lacinho de fita – chave de um
piano autêntico, embora usado, que me aguardava na outra sala, e que
me haviam comprado para uma comovente surpresa de aniversário.
Quando, tempos depois, tive de
desfazer-me dele, não me restou sequer o consolo de ter desvendado o
mais elementar de seus segredos, qual fosse o misterioso caminho que
meus dedos deveriam percorrer em suas teclas para delas extrair ao
menos as notas de “Linda borboleta”, para sempre esquecida.
Minha pretensa vocação musical, trazida
da infância como um complexo, com o tempo já se achava um pouco
comprometida pela confirmação melancólica de que papagaio velho
não aprende a falar, que dirá tocar piano. Ainda assim, acabei um
dia esvaziando o pé-de-meia e comprando outro, insuflado pelo
ensinamento de Platão, que adaptei às exigências de minha duvidosa
inclinação musical: só se aprende a tocar, tocando. E me entreguei
à competência de um professor que resolvi contratar.
Fui, todavia, levado a suspender as
aulas, ao saber que a intenção do eficiente exigências de minha
duvidosa inclinação musical: só se aprende a tocar, tocando. E me
entreguei à competência de um professor que resolvi contratar.
Fui, todavia, levado a suspender as
aulas, ao saber que a intenção do eficiente mestre era a de me
fazer ao fim de um ano estar tocando Mendelssohn. Ora, jamais na
minha vida pretendi tocar Mendelssohn, mas somente arranhar uma
musiquinha de jazz tradicional, para deleite apenas de meus ouvidos e
a tolerância masoquista dos vizinhos. E como mesmo tão modesta
pretensão faz com que o piano continue sorrindo com todas as teclas
ao atropelo simiesco de meus dedos, resolvo abandoná-lo e me
recolher à insignificância das minhas desafinadas horas de lazer.
Até que um dia, à falta de melhor
proveito, antes que o atirem ao mar como o de Aníbal Machado, o
piano seja recolhido a um porão, para que os dedos de um menino
possam descobrir nas suas velhas teclas uma vocação de pianista
capaz de redimir esta frustração do pai.
Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula
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