Chegamos ao barracão. Não tinha a menor
vontade de comer, e fui sentar-me sobre um rochedo na beira do mar.
Zorba acendeu o fogo, comeu, esteve para vir a meu encontro, mas
mudou de ideia; deitou-se sobre seu chão e dormiu.
O mar estava quase parado. Imóvel sobre
a salva de estrelas, a terra calava-se também. Nem um cão ladrava,
nem um pássaro noturno se lamentava. Um silêncio total, envolvente,
perigoso, feito de milhares de gritos, tão longínquos ou profundos
que não se conseguia ouvi-los. Sentia apenas o rumor de meu sangue
batendo nas têmporas e no pescoço.
“A melodia do tigre”, pensei eu,
estremecendo.
Na Índia, quando caí à noite, canta-se
em voz baixa uma música dolorosa e monótona, um canto selvagem e
lento como o bramir longínquo de uma fera — a melodia do tigre. O
coração do homem transborda uma espera aterrorizante.
E como eu pensasse na terrível melopeia,
o vazio em meu peito se foi enchendo pouco a pouco. Minhas orelhas
acordaram, o silêncio transformou-se em grito. Dir-se-ia que a alma,
feita ela também da mesma melodia, se evadia do corpo para escutar.
Abaixei-me, enchi a palma da mão com
água do mar, molhei minha testa e têmporas. Senti-me refrescado. No
fundo de mim mesmo, gritos ressoavam, ameaçadores, confusos,
impacientes — o tigre estava em mim e rugia.
E, de repente, ouvi claramente a voz:
— Buda! Buda! — gritei eu,
levantando-me de um salto.
Pus-me a andar depressa, na beira do mar,
como se quisesse escapar. Há algum tempo já, quando estou só à
noite e que reina o silêncio, escuto sua voz — triste no começo,
súplice como uma lamentação; aos poucos vai-se irritando, resmunga
e ordena. E bate em meu peito como uma criança cuja hora de nascer
chegou.
Devia ser meia-noite. Nuvens negras que
haviam juntado no céu, e grandes gotas caíam sobre minhas mãos.
Mas, não prestei nenhuma atenção. Estava mergulhado em uma
atmosfera ardente, e sentia à direita e esquerda, sobre minhas
têmporas, dois anéis de fogo.
Chegou o momento, pensei eu,
estremecendo. A espiral de Buda está me erguendo, é hora de
libertar-me de meu fardo maravilhoso.
Voltei rapidamente ao barracão e acendi
a lamparina. Zorba, assim que a luz acendeu-se, bateu as pálpebras,
abriu os olhos, me viu debruçar sobre o papel e escrever. Resmungou
alguma coisa que não entendi, virou-se contra a parede e voltou ao
sono.
Eu escrevia rapidamente, estava com
pressa. Buda inteiro estava em mim, e eu o via se desenrolar de meu
espírito como uma fita azul coberta de signos. Ele se desenrolava
com rapidez, e eu me apressava para alcançá-lo. Escrevia, e tudo
tornava-se fácil, simples.
Não escrevia, copiava. Todo um mundo
aparecia diante de mim, feito de compaixão, de renúncia, de ar —
palácio de Buda, as mulheres do harém, a carruagem de ouro, os três
encontros fatais: com o velho, com o doente, com a morte; a fuga, o
acesso, o parto, a proclamação da salvação. A terra se cobria de
flores amarelas, os mendigos e os reis vestiam roupagens amarelas, as
pedras, os bosques, as carnes se tornavam leves. As almas
transformavam-se em ar, em espírito, o espírito se evolava. Meus
dedos se cansaram, mas eu não queria, eu não podia parar. A visão
passava, rápida e fugia; era preciso capturá-la.
De manhã Zorba encontrou-me adormecido,
com a cabeça sobre o manuscrito.
Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego
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