segunda-feira, 7 de junho de 2021

A melodia do tigre

Chegamos ao barracão. Não tinha a menor vontade de comer, e fui sentar-me sobre um rochedo na beira do mar. Zorba acendeu o fogo, comeu, esteve para vir a meu encontro, mas mudou de ideia; deitou-se sobre seu chão e dormiu.
O mar estava quase parado. Imóvel sobre a salva de estrelas, a terra calava-se também. Nem um cão ladrava, nem um pássaro noturno se lamentava. Um silêncio total, envolvente, perigoso, feito de milhares de gritos, tão longínquos ou profundos que não se conseguia ouvi-los. Sentia apenas o rumor de meu sangue batendo nas têmporas e no pescoço.
A melodia do tigre”, pensei eu, estremecendo.
Na Índia, quando caí à noite, canta-se em voz baixa uma música dolorosa e monótona, um canto selvagem e lento como o bramir longínquo de uma fera — a melodia do tigre. O coração do homem transborda uma espera aterrorizante.
E como eu pensasse na terrível melopeia, o vazio em meu peito se foi enchendo pouco a pouco. Minhas orelhas acordaram, o silêncio transformou-se em grito. Dir-se-ia que a alma, feita ela também da mesma melodia, se evadia do corpo para escutar.
Abaixei-me, enchi a palma da mão com água do mar, molhei minha testa e têmporas. Senti-me refrescado. No fundo de mim mesmo, gritos ressoavam, ameaçadores, confusos, impacientes — o tigre estava em mim e rugia.
E, de repente, ouvi claramente a voz:
Buda! Buda! — gritei eu, levantando-me de um salto.
Pus-me a andar depressa, na beira do mar, como se quisesse escapar. Há algum tempo já, quando estou só à noite e que reina o silêncio, escuto sua voz — triste no começo, súplice como uma lamentação; aos poucos vai-se irritando, resmunga e ordena. E bate em meu peito como uma criança cuja hora de nascer chegou.
Devia ser meia-noite. Nuvens negras que haviam juntado no céu, e grandes gotas caíam sobre minhas mãos. Mas, não prestei nenhuma atenção. Estava mergulhado em uma atmosfera ardente, e sentia à direita e esquerda, sobre minhas têmporas, dois anéis de fogo.
Chegou o momento, pensei eu, estremecendo. A espiral de Buda está me erguendo, é hora de libertar-me de meu fardo maravilhoso.
Voltei rapidamente ao barracão e acendi a lamparina. Zorba, assim que a luz acendeu-se, bateu as pálpebras, abriu os olhos, me viu debruçar sobre o papel e escrever. Resmungou alguma coisa que não entendi, virou-se contra a parede e voltou ao sono.
Eu escrevia rapidamente, estava com pressa. Buda inteiro estava em mim, e eu o via se desenrolar de meu espírito como uma fita azul coberta de signos. Ele se desenrolava com rapidez, e eu me apressava para alcançá-lo. Escrevia, e tudo tornava-se fácil, simples.
Não escrevia, copiava. Todo um mundo aparecia diante de mim, feito de compaixão, de renúncia, de ar — palácio de Buda, as mulheres do harém, a carruagem de ouro, os três encontros fatais: com o velho, com o doente, com a morte; a fuga, o acesso, o parto, a proclamação da salvação. A terra se cobria de flores amarelas, os mendigos e os reis vestiam roupagens amarelas, as pedras, os bosques, as carnes se tornavam leves. As almas transformavam-se em ar, em espírito, o espírito se evolava. Meus dedos se cansaram, mas eu não queria, eu não podia parar. A visão passava, rápida e fugia; era preciso capturá-la.
De manhã Zorba encontrou-me adormecido, com a cabeça sobre o manuscrito.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

Nenhum comentário:

Postar um comentário