O recorte de um jornal de Campos me traz
a notícia da morte de um tipo de rua, conhecido na grande cidade
fluminense como Rin-Tin-Tin. Teria mais de cem anos e alegava ter
tomado parte na Guerra de Canudos.
Seu nome verdadeiro ninguém sabe; mas o
jornal diz que ele é o mesmo homem conhecido em Cachoeiro de
Itapemirim como Tenerá. É possível que tivesse outros nomes em
outras cidades, pois um pouco por toda parte ele aparecia sem dizer
de onde vinha; e depois sumia sem avisar para onde ia.
Tenerá era alto, de uma gordura
desajeitada de distrofia glandular, e tinha uma cara enorme de índio
tapuia, uma cara vincada e terrosa, de jenipapo maduro. Vestia-se com
extravagância de apalache, andava sério e lento, apregoando o
Correio do Sul ou algum avulso de propaganda de casa comercial. Fora
disto pegava alguns cobres amestrando cães: ensinava um pobre
vira-lata a sentar, deitar, carregar coisas, seguir as ordens do dono
e até a dançar sobre as patas traseiras.
Durante algum tempo Tenerá morou com
seus cachorros nos baixos do prédio da Farmácia Central, que era de
parentes meus. Os fundos davam para o rio, e havia, entre os pilares
que sustentavam o prédio, muito espaço para o homem e seus cães.
Durante algum tempo trabalhei na
farmácia, para ter algum dinheirinho meu. Lavava vidros com grãos
de chumbo, entregava uma ou outra encomenda mais urgente, ajudava no
balcão — e se não cheguei a ser uma glória da farmacologia
brasileira pelo menos aprendi a fazer Limonada Purgativa e Água
Vienense. Outras receitas mais complicadas o farmacêutico aviava; eu
o via com respeito misturar líquidos, e pesar pós ou colar rótulos
e fazer sobre a rolha do frasco aquele pequeno capuz de papel
plissado amarrado ao gargalo com um barbante. Nunca fui hábil nisso,
e minha mão era estabanada mesmo para rolar pílulas e misturar
pomadas com a espátula; só uma vez, com emoção, trabalhei com o
almofariz.
Gostoso era ajudar a abrir os grandes
caixotes de remédios vindos do Rio; sempre traziam algum material de
propaganda colorido, cartazes, folhetos, almanaques, brindes. Mesmo a
nova embalagem de uma droga antiga era algo que me dava prazer.
Minhas relações com Tenerá ficaram
então mais estreitas; deslumbrei-o certa vez com a mágica fácil de
derramar algumas gotas de glicerina sobre limalhas de permanganato:
aquela combinação de duas coisas frias resultando em fogo e
estalidos me deu a seus olhos um prestígio de jovem cientista. Nas
horas de folga, eu e o primo Costinha nos divertíamos, às vezes, de
uma janela que dava para o rio, a atirar de Flaubert nos camaleões
que apareciam lá embaixo, nas pedras do rio. Isto inquietava o
Tenerá, por si mesmo e pelos seus cães.
Viveu muitos anos em Cachoeiro e se
atribuía de certo modo todos os melhoramentos que a cidade teve
depois de sua chegada: “Quando eu cheguei aqui não havia isso nem
aquilo...”
É verdade que muitos políticos fazem
coisa idêntica em relação aos progressos deste pobre Brasil, que
vai para a frente, mesmo porque é este o seu jeito e rumo.
Só vi Tenerá fazer pouco de Cachoeiro
uma vez. Foi quando por algum motivo o prenderam e o puseram a
capinar o pátio em frente à cadeia velha. Trabalhando ao sol, ele
dizia bem alto, para que o delegado e todos ouvissem:
— Eu já estive preso em cadeia muito
melhor do que esta. Muito melhor do que esta porcaria!
Rubem Braga, in Recado de primavera
Nenhum comentário:
Postar um comentário