Os grandes gostavam de judiar dos
pequenos. Havia, à distância de um grito, uma mata fechada. Nunca
fui lá perto. A mata era o mistério. Escura. De dia ela estava
quieta. De noite vinham os barulhos estranhos. Pios de aves noturnas.
Barulhos de animais. A gente os ouvia de dentro da casa, trancados,
imaginando...
Pois os grandes gostavam de me torturar
dizendo que na mata morava um menino pequeno como eu. E, para provar,
gritavam com mãos em concha: “Ô menino!”. Passavam-se alguns
segundos e de dentro da mata vinha a resposta baixinho: “Ô
menino!”. Era o eco. Eu não sabia o que era eco. E acreditava.
Antes de dormir, na minha cama, eu ficava a pensar naquele menino
sozinho, abandonado na mata, sem casa, sem cama. E eu ficava triste,
com dó dele. Hoje sei que o menino não existia. Mas a minha
tristeza existia. A solidão daquele menino me acompanha até hoje.
Eu tinha medo de que a onça o comesse. Porque todo mundo jurava já
ter visto onça.
Foi então que me caiu nas mãos um
livrinho, Almanaque do Biotônico Fontoura. Mesmo sem saber
ler, fiquei fascinado com um desenho: um homem dando um murro na cara
de uma onça enquanto uma outra onça contempla a cena com cara de
espanto. E o homem dizia: “Conheceu, papuda!”. Essa frase
do esmurra-onças me fazia rir. Era o almanaque do Jeca Tatuzinho.
Minha mãe me lia a estória do Jeca Tatuzinho todo dia. E quando
chegava no “conheceu, papuda!” eu ria como se fosse a
primeira vez. O Jeca Tatuzinho me fez perder o medo das onças.
Decorei o livrinho e o levava comigo. E sempre que oportunidade
surgia eu me oferecia para lê-lo, para quem quisesse. Minha tia Mema
estava doente. Tinha tido um peripaque cardíaco. Ficava assentada o
dia inteiro, com aquele sorriso manso, sem nunca se queixar. Eu me
assentava num banquinho, abria no Jeca Tatuzinho e lia para ela:
“Jeca-tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de
sapé. Vivia na maior pobreza em companhia da mulher, muito magra e
feia, e de vários filhinhos pálidos e tristes...” .
Dizem que os brasileiros de agora não
gostam de ler. Naqueles tempos todo brasileiro, inclusive os
analfabetos da roça, iam às farmácias para saber se o almanaque já
havia chegado. Naqueles tempos as farmácias eram centros de
irradiação da cultura. Até hoje os almanaques são fascinantes.
Especialmente o Almanaque Brasil de Cultura Popular, do Elifas
Andreato. Acho que todo brasileiro gosta de ler almanaque. Eu gosto.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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