quinta-feira, 3 de junho de 2021

Informe-se sobre o racismo

O sistema racista está em constante processo de atualização e, portanto, deve-se entender seu funcionamento. Segundo Kabengele Munanga, importante pensador negro e professor na Universidade de São Paulo,

sem dúvida, todos os racismos são abomináveis e cada um faz as suas vítimas do seu modo. O brasileiro não é o pior, nem o melhor, mas ele tem as suas peculiaridades, entre as quais o silêncio, o não dito, que confunde todos os brasileiros e brasileiras, vítimas e não vítimas [do racismo].

Dessa forma, como explica Munanga, para entender o racismo no Brasil é preciso diferenciá-lo de outras experiências conhecidas, como o regime nazista, o apartheid sul-africano ou a situação da população negra nos Estados Unidos na primeira metade do século XX, nas quais o racismo era explícito e institucionalizado por leis e práticas oficiais.
É verdade que o Brasil é diferente, mas nada é mais equivocado do que concluir que por isso não somos um país racista. É preciso identificar os mitos que fundam as peculiaridades do sistema de opressão operado aqui, e certamente o da democracia racial é o mais conhecido e nocivo deles. Concebido e propagado por sociólogos pertencentes à elite econômica na metade do século XX, esse mito afirma que no Brasil houve a transcendência dos conflitos raciais pela harmonia entre negros e brancos, traduzida na miscigenação e na ausência de leis segregadoras. O livro Casa-grande & senzala , de Gilberto Freyre, tornou-se um clássico mundial com a exportação dessa tese. A relevância da obra está em romper com uma tradição que legitimava o racismo científico—teorias biologizantes formuladas no século XIX que preconizavam uma suposta inferioridade natural do negro como forma de justificar a escravidão nas Américas—, tal como apresentado nas obras de Nina Rodrigues, por exemplo. Mas é preciso ler Freyre criticamente, indo na contramão daqueles que, estimulados pela naturalização da miscigenação forçada durante o período colonial, perpetuam o mito da democracia racial. Essa visão paralisa a prática antirracista, pois romantiza as violências sofridas pela população negra ao escamotear a hierarquia racial com uma falsa ideia de harmonia.
Na obra Brancos e negros em São Paulo, Roger Bastide e Florestan Fernandes apontaram:

Nós, brasileiros”, dizia-nos um branco, “temos o preconceito de não ter preconceito. E esse simples fato basta para mostrar a que ponto está arraigado no nosso meio social.” Muitas respostas negativas explicam-se por esse preconceito de ausência de preconceito, por essa fidelidade do Brasil ao seu ideal de democracia racial.

Como diz Munanga, “ecoa, dentro de muitos brasileiros, uma voz muito forte que grita: ‘Não somos racistas! Racistas são os outros!’”. Eu considero essa voz uma inércia causada pelo mito da democracia racial. Um bom exemplo dessa atitude está numa pesquisa do Datafolha realizada em 1995, que mostrou que 89% dos brasileiros admitiam existir preconceito de cor no Brasil, mas 90% se identificavam como não racistas. Na época, a pesquisa foi considerada a maior sobre o tema, entrevistando 5081 pessoas maiores de dezesseis anos, em 121 cidades, de todas as unidades da federação.
Devemos aprender com a história do feminismo negro, que nos ensina a importância de nomear as opressões, já que não podemos combater o que não tem nome. Dessa forma, reconhecer o racismo é a melhor forma de combatê-lo. Não tenha medo das palavras “branco”, “negro”, “racismo”, “racista”. Dizer que determinada atitude foi racista é apenas uma forma de caracterizá-la e definir seu sentido e suas implicações. A palavra não pode ser um tabu, pois o racismo está em nós e nas pessoas que amamos—mais grave é não reconhecer e não combater a opressão.
Chegamos, assim, à seguinte pergunta: o que, de fato, cada um de nós tem feito e pode fazer pela luta antirracista? O autoquestionamento—fazer perguntas, entender seu lugar e duvidar do que parece “natural”—é a primeira medida para evitar reproduzir esse tipo de violência, que privilegia uns e oprime outros. Simone de Beauvoir, em referência a Stendhal, autor que segundo a filósofa atribuía humanidade às suas personagens femininas, dizia que um homem que enxergasse a mulher como sujeito e tivesse uma relação de alteridade para com ela poderia ser considerado feminista. Esse mesmo raciocínio pode ser usado para pensar o antirracismo, com a ressalva de que sobre a mulher negra incide a opressão de classe, de gênero e de raça, tornando o processo ainda mais complexo.

Djamila Ribeiro, in Pequeno Manual antirracista

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