O sistema racista está em constante
processo de atualização e, portanto, deve-se entender seu
funcionamento. Segundo Kabengele Munanga, importante pensador negro e
professor na Universidade de São Paulo,
sem dúvida, todos os racismos são
abomináveis e cada um faz as suas vítimas do seu modo. O brasileiro
não é o pior, nem o melhor, mas ele tem as suas peculiaridades,
entre as quais o silêncio, o não dito, que confunde todos os
brasileiros e brasileiras, vítimas e não vítimas [do racismo].
Dessa forma, como explica Munanga, para
entender o racismo no Brasil é preciso diferenciá-lo de outras
experiências conhecidas, como o regime nazista, o apartheid
sul-africano ou a situação da população negra nos Estados Unidos
na primeira metade do século XX, nas quais o racismo era explícito
e institucionalizado por leis e práticas oficiais.
É verdade que o Brasil é diferente, mas
nada é mais equivocado do que concluir que por isso não somos um
país racista. É preciso identificar os mitos que fundam as
peculiaridades do sistema de opressão operado aqui, e certamente o
da democracia racial é o mais conhecido e nocivo deles. Concebido e
propagado por sociólogos pertencentes à elite econômica na metade
do século XX, esse mito afirma que no Brasil houve a transcendência
dos conflitos raciais pela harmonia entre negros e brancos, traduzida
na miscigenação e na ausência de leis segregadoras. O livro
Casa-grande & senzala , de Gilberto Freyre, tornou-se um clássico
mundial com a exportação dessa tese. A relevância da obra está em
romper com uma tradição que legitimava o racismo científico—teorias
biologizantes formuladas no século XIX que preconizavam uma suposta
inferioridade natural do negro como forma de justificar a escravidão
nas Américas—, tal como apresentado nas obras de Nina Rodrigues,
por exemplo. Mas é preciso ler Freyre criticamente, indo na
contramão daqueles que, estimulados pela naturalização da
miscigenação forçada durante o período colonial, perpetuam o mito
da democracia racial. Essa visão paralisa a prática antirracista,
pois romantiza as violências sofridas pela população negra ao
escamotear a hierarquia racial com uma falsa ideia de harmonia.
Na obra Brancos e negros em São
Paulo, Roger Bastide e Florestan Fernandes apontaram:
“Nós, brasileiros”, dizia-nos um
branco, “temos o preconceito de não ter preconceito. E esse
simples fato basta para mostrar a que ponto está arraigado no nosso
meio social.” Muitas respostas negativas explicam-se por esse
preconceito de ausência de preconceito, por essa fidelidade do
Brasil ao seu ideal de democracia racial.
Como diz Munanga, “ecoa, dentro de
muitos brasileiros, uma voz muito forte que grita: ‘Não somos
racistas! Racistas são os outros!’”. Eu considero essa voz uma
inércia causada pelo mito da democracia racial. Um bom exemplo dessa
atitude está numa pesquisa do Datafolha realizada em 1995, que
mostrou que 89% dos brasileiros admitiam existir preconceito de cor
no Brasil, mas 90% se identificavam como não racistas. Na época, a
pesquisa foi considerada a maior sobre o tema, entrevistando 5081
pessoas maiores de dezesseis anos, em 121 cidades, de todas as
unidades da federação.
Devemos aprender com a história do
feminismo negro, que nos ensina a importância de nomear as
opressões, já que não podemos combater o que não tem nome. Dessa
forma, reconhecer o racismo é a melhor forma de combatê-lo. Não
tenha medo das palavras “branco”, “negro”, “racismo”,
“racista”. Dizer que determinada atitude foi racista é apenas
uma forma de caracterizá-la e definir seu sentido e suas
implicações. A palavra não pode ser um tabu, pois o racismo está
em nós e nas pessoas que amamos—mais grave é não reconhecer e
não combater a opressão.
Chegamos, assim, à seguinte pergunta: o
que, de fato, cada um de nós tem feito e pode fazer pela luta
antirracista? O autoquestionamento—fazer perguntas, entender seu
lugar e duvidar do que parece “natural”—é a primeira medida
para evitar reproduzir esse tipo de violência, que privilegia uns e
oprime outros. Simone de Beauvoir, em referência a Stendhal, autor
que segundo a filósofa atribuía humanidade às suas personagens
femininas, dizia que um homem que enxergasse a mulher como sujeito e
tivesse uma relação de alteridade para com ela poderia ser
considerado feminista. Esse mesmo raciocínio pode ser usado para
pensar o antirracismo, com a ressalva de que sobre a mulher negra
incide a opressão de classe, de gênero e de raça, tornando o
processo ainda mais complexo.
Djamila Ribeiro, in Pequeno Manual antirracista
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