Lane estava mais ou menos na metade dessa
nova leitura da carta quando foi interrompido — invadido,
atropelado — por um rapaz entroncado chamado Ray Sorenson, que
queria saber se Lane sabia qual era a desse filho da puta do Rilke.
Lane e Sorenson frequentavam juntos a disciplina Literatura Europeia
Moderna 251 (aberta apenas para veteranos e pós-graduandos) e tinham
que ler a quarta das “Elegias de Duíno” de Rilke para
segunda-feira. Lane, que conhecia Sorenson só de passagem mas tinha
uma vaga aversão categórica à cara e aos modos dele, guardou a
carta e disse que não sabia mas achava que tinha entendido quase
tudo. “Sorte sua”, Sorenson disse. “Você é um felizardo.”
Sua voz se propagava com um mínimo de vitalidade, como se ele
tivesse ido falar com Lane movido por tédio ou inquietude, não por
qualquer tipo de intercurso humano. “Jesus, como está frio”, ele
disse, e tirou um maço de cigarros do bolso. Lane percebeu uma marca
desbotada mas ainda chamativa de batom na lapela do casaco de lã de
camelo de Sorenson. Parecia que estava ali havia semanas, talvez
meses, mas ele não conhecia Sorenson assim tão bem a ponto de
mencionar e, a bem da verdade, aquilo não lhe importava nem um
pouco. Além disso, o trem estava chegando. Os dois rapazes como que
viraram o rosto metade para a esquerda para ver a locomotiva que se
aproximava. Quase ao mesmo tempo, a porta da sala de espera se abriu
de supetão, e os rapazes que estavam se aquecendo começaram a sair
para receber o trem, quase todos dando a impressão de ter ao menos
três cigarros acesos em cada mão.
O próprio Lane acendeu um cigarro quando
o trem ia encostando. Então, como tantas pessoas que, talvez,
merecessem receber somente uma autorização muito provisória para a
recepção de trens, tentou esvaziar o rosto de qualquer expressão
que pudesse de modo muito simples, quem sabe até lindo, revelar o
que sentia pela pessoa que chegava.
Franny estava entre as primeiras meninas
a descer do trem, de um vagão lá na ponta norte da plataforma. Lane
a encontrou imediatamente, e apesar do que estivesse tentando fazer
com o rosto, seu braço que disparou para o alto era toda a verdade.
Franny viu o braço, e ele, e acenou exageradamente. Estava usando um
casaco de pele de guaxinim, e Lane, indo até ela com passos rápidos
mas rosto lento, pensou, com empolgação contida, que era a única
pessoa ali na plataforma que conhecia de verdade o casaco de
Franny. Lembrou que uma vez, num carro emprestado, depois de ficar
coisa de meia hora beijando Franny, tinha beijado a lapela do seu
casaco, como se fosse uma extensão orgânica e absolutamente
desejável dela própria.
“Lane!”, Franny o cumprimentou alegre
— e ela não era de esvaziar o rosto de expressões. Ela se abraçou
a ele e lhe deu um beijo. Era um beijo de plataforma de estação —
bem espontâneo para começar, mas um tanto inibido na sequência, e
com algo de uma trombada de testas. “Você recebeu minha carta?”,
ela perguntou, e acrescentou, quase sem parar para respirar, “Você
está com cara de quem quase congelou, coitadinho. Por que não ficou
esperando lá dentro? Você recebeu minha carta?”
“Que carta?”, Lane disse, pegando a
mala dela. Era azul-marinho com frisos brancos, como meia dúzia de
outras malas que tinham acabado de ser retiradas do trem.
“Você não recebeu? Eu pus no
correio quarta-feira. Ah, meu Deus! Eu até levei direto na
agência —”
“Ah, essa carta. Recebi sim. Você só
trouxe isso de bagagem? Que livro é esse?”
O olhar de Franny desceu à sua mão
esquerda. Nela, trazia um livrinho verde-ervilha, com capa coberta de
tecido. “Esse aqui? Ah, nada”, ela disse. Abriu a bolsa, meteu o
livro lá dentro e foi atrás de Lane pela plataforma, rumo ao ponto
de táxi. Passou um braço em volta dele, e falou praticamente ou
totalmente sozinha no caminho. Primeiro foi alguma coisa a respeito
de um vestido que tinha trazido e precisava passar. Ela disse que
tinha comprado um ferrinho bem fofo que parecia uma coisa de casa de
bonecas mas tinha esquecido de trazer. Disse que achava que não
conhecia mais que três meninas no trem — Martha Farrar, Tippie
Tibbett e Eleanor não sei das quantas, que tinha conhecido anos
antes, nos tempos da escola interna, em Exeter ou algum outro lugar.
O resto das pessoas do trem, Franny disse, parecia muito Universidade
Smith, fora duas figuras absolutamente Vassar e uma figura abso luta
mente Bennington ou Sarah Lawrence. A figura Bennington-Sarah
Lawrence parecia com alguém que passou a viagem toda no banheiro,
esculpindo ou pintando ou sabe-se lá o quê, ou alguém que tinha
uma malha de dançarina por baixo do vestido. Lane, andando um tanto
rápido demais, disse que lamentava não ter conseguido um lugar para
ela na Croft House — claro que era uma chance em um milhão —,
mas que tinha conseguido uma vaga num lugar bem bacana e acolhedor.
Pequeno, mas limpinho e tudo mais. Ela ia gostar, ele disse, e Franny
imediatamente visualizou uma casa de cômodos feita de tábuas
brancas. Três meninas que não se conheciam no mesmo quarto. Quem
chegasse primeiro ficava com o sofá-cama calombudo, e as outras duas
iam dividir uma cama de casal com um colchão absolutamente
fantástico. “Lindo”, ela disse entusiasmada. Às vezes era um
inferno ocultar a impaciência que sentia em relação à
generalizada incapacidade dos machos de sua espécie, e à de Lane em
especial. Isso a lembrava de uma noite de chuva em Nova York, logo
depois do teatro, quando Lane, com um suspeito excesso de caridade de
calçada, deixou aquele sujeitinho horroroso de smoking tirar o táxi
dele. Ela não tinha dado grande importância àquilo — assim,
Jesus, seria pavoroso ter que ser homem e conseguir um táxi
num dia de chuva —, mas lembrava do olhar totalmente horroroso e
hostil que Lane lhe dirigiu quando retornou à calçada. Agora, com
uma estranha sensação de culpa enquanto pensava nessa e em outras
coisas, deu um apertozinho especial de pretenso afeto no braço de
Lane. Os dois entraram num táxi. A mala azul-marinho com os frisos
brancos foi na frente com o chofer.
“A gente larga a sua mala lá onde você
vai ficar — só joga lá dentro mesmo — e aí a gente almoça”,
Lane disse. “Eu estou morrendo de fome.” Ele se inclinou e deu um
endereço para o chofer.
“Ah, que delícia te ver!”, Franny
disse quando o táxi partiu. “Eu estava com saudade.”
Assim que as palavras saíram ela percebeu que aquilo não era
verdade. De novo sentindo culpa, pegou a mão de Lane e entrelaçou,
com força, com calor, seus dedos nos dele.
J. D. Salinger, in Franny & Zooey
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