terça-feira, 1 de junho de 2021

Franny

Lane estava mais ou menos na metade dessa nova leitura da carta quando foi interrompido — invadido, atropelado — por um rapaz entroncado chamado Ray Sorenson, que queria saber se Lane sabia qual era a desse filho da puta do Rilke. Lane e Sorenson frequentavam juntos a disciplina Literatura Europeia Moderna 251 (aberta apenas para veteranos e pós-graduandos) e tinham que ler a quarta das “Elegias de Duíno” de Rilke para segunda-feira. Lane, que conhecia Sorenson só de passagem mas tinha uma vaga aversão categórica à cara e aos modos dele, guardou a carta e disse que não sabia mas achava que tinha entendido quase tudo. “Sorte sua”, Sorenson disse. “Você é um felizardo.” Sua voz se propagava com um mínimo de vitalidade, como se ele tivesse ido falar com Lane movido por tédio ou inquietude, não por qualquer tipo de intercurso humano. “Jesus, como está frio”, ele disse, e tirou um maço de cigarros do bolso. Lane percebeu uma marca desbotada mas ainda chamativa de batom na lapela do casaco de lã de camelo de Sorenson. Parecia que estava ali havia semanas, talvez meses, mas ele não conhecia Sorenson assim tão bem a ponto de mencionar e, a bem da verdade, aquilo não lhe importava nem um pouco. Além disso, o trem estava chegando. Os dois rapazes como que viraram o rosto metade para a esquerda para ver a locomotiva que se aproximava. Quase ao mesmo tempo, a porta da sala de espera se abriu de supetão, e os rapazes que estavam se aquecendo começaram a sair para receber o trem, quase todos dando a impressão de ter ao menos três cigarros acesos em cada mão.
O próprio Lane acendeu um cigarro quando o trem ia encostando. Então, como tantas pessoas que, talvez, merecessem receber somente uma autorização muito provisória para a recepção de trens, tentou esvaziar o rosto de qualquer expressão que pudesse de modo muito simples, quem sabe até lindo, revelar o que sentia pela pessoa que chegava.
Franny estava entre as primeiras meninas a descer do trem, de um vagão lá na ponta norte da plataforma. Lane a encontrou imediatamente, e apesar do que estivesse tentando fazer com o rosto, seu braço que disparou para o alto era toda a verdade. Franny viu o braço, e ele, e acenou exageradamente. Estava usando um casaco de pele de guaxinim, e Lane, indo até ela com passos rápidos mas rosto lento, pensou, com empolgação contida, que era a única pessoa ali na plataforma que conhecia de verdade o casaco de Franny. Lembrou que uma vez, num carro emprestado, depois de ficar coisa de meia hora beijando Franny, tinha beijado a lapela do seu casaco, como se fosse uma extensão orgânica e absolutamente desejável dela própria.
Lane!”, Franny o cumprimentou alegre — e ela não era de esvaziar o rosto de expressões. Ela se abraçou a ele e lhe deu um beijo. Era um beijo de plataforma de estação — bem espontâneo para começar, mas um tanto inibido na sequência, e com algo de uma trombada de testas. “Você recebeu minha carta?”, ela perguntou, e acrescentou, quase sem parar para respirar, “Você está com cara de quem quase congelou, coitadinho. Por que não ficou esperando lá dentro? Você recebeu minha carta?”
Que carta?”, Lane disse, pegando a mala dela. Era azul-marinho com frisos brancos, como meia dúzia de outras malas que tinham acabado de ser retiradas do trem.
Você não recebeu? Eu pus no correio quarta-feira. Ah, meu Deus! Eu até levei direto na agência —”
Ah, essa carta. Recebi sim. Você só trouxe isso de bagagem? Que livro é esse?”
O olhar de Franny desceu à sua mão esquerda. Nela, trazia um livrinho verde-ervilha, com capa coberta de tecido. “Esse aqui? Ah, nada”, ela disse. Abriu a bolsa, meteu o livro lá dentro e foi atrás de Lane pela plataforma, rumo ao ponto de táxi. Passou um braço em volta dele, e falou praticamente ou totalmente sozinha no caminho. Primeiro foi alguma coisa a respeito de um vestido que tinha trazido e precisava passar. Ela disse que tinha comprado um ferrinho bem fofo que parecia uma coisa de casa de bonecas mas tinha esquecido de trazer. Disse que achava que não conhecia mais que três meninas no trem — Martha Farrar, Tippie Tibbett e Eleanor não sei das quantas, que tinha conhecido anos antes, nos tempos da escola interna, em Exeter ou algum outro lugar. O resto das pessoas do trem, Franny disse, parecia muito Universidade Smith, fora duas figuras absolutamente Vassar e uma figura abso luta mente Bennington ou Sarah Lawrence. A figura Bennington-Sarah Lawrence parecia com alguém que passou a viagem toda no banheiro, esculpindo ou pintando ou sabe-se lá o quê, ou alguém que tinha uma malha de dançarina por baixo do vestido. Lane, andando um tanto rápido demais, disse que lamentava não ter conseguido um lugar para ela na Croft House — claro que era uma chance em um milhão —, mas que tinha conseguido uma vaga num lugar bem bacana e acolhedor. Pequeno, mas limpinho e tudo mais. Ela ia gostar, ele disse, e Franny imediatamente visualizou uma casa de cômodos feita de tábuas brancas. Três meninas que não se conheciam no mesmo quarto. Quem chegasse primeiro ficava com o sofá-cama calombudo, e as outras duas iam dividir uma cama de casal com um colchão absolutamente fantástico. “Lindo”, ela disse entusiasmada. Às vezes era um inferno ocultar a impaciência que sentia em relação à generalizada incapacidade dos machos de sua espécie, e à de Lane em especial. Isso a lembrava de uma noite de chuva em Nova York, logo depois do teatro, quando Lane, com um suspeito excesso de caridade de calçada, deixou aquele sujeitinho horroroso de smoking tirar o táxi dele. Ela não tinha dado grande importância àquilo — assim, Jesus, seria pavoroso ter que ser homem e conseguir um táxi num dia de chuva —, mas lembrava do olhar totalmente horroroso e hostil que Lane lhe dirigiu quando retornou à calçada. Agora, com uma estranha sensação de culpa enquanto pensava nessa e em outras coisas, deu um apertozinho especial de pretenso afeto no braço de Lane. Os dois entraram num táxi. A mala azul-marinho com os frisos brancos foi na frente com o chofer.
A gente larga a sua mala lá onde você vai ficar — só joga lá dentro mesmo — e aí a gente almoça”, Lane disse. “Eu estou morrendo de fome.” Ele se inclinou e deu um endereço para o chofer.
Ah, que delícia te ver!”, Franny disse quando o táxi partiu. “Eu estava com saudade.” Assim que as palavras saíram ela percebeu que aquilo não era verdade. De novo sentindo culpa, pegou a mão de Lane e entrelaçou, com força, com calor, seus dedos nos dele.

J. D. Salinger, in Franny & Zooey

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