Para cada um de nós, existe um ponto
além do qual o cansaço físico se transforma em algo diferente.
Este ponto não é fixo, mudando com o nível de preparo físico.
Quanto mais em forma, mais a pessoa tem que trabalhar para
alcançá-lo. Este ponto é como uma montanha, perdida na distância,
coberta por uma densa neblina. Se você consegue alcançá-lo, jamais
será o mesmo. É o que chamo de Ponto de Ruptura. Note que o Ponto
de Ruptura não é como a “parede”, velha conhecida dos atletas
de esportes de resistência, como maratonas ou triátlons de longa
distância como o Ironman. A parede ocorre quando o seu corpo esgota
as reservas musculares de glicogênio como combustível.
Quando isso acontece, a parede vem em
minutos. Atletas bem treinados, especialmente os ultramaratonistas,
sabem como evitar a parede. O segredo é uma combinação de treino e
nutrição durante a atividade física. Para corredores, o treino
consiste em aumentar gradativamente a distância sem usar suplementos
nutritivos. Já a nutrição durante a atividade deve incluir comidas
sólidas e outros suplementos calóricos e eletrolíticos. Em
ultramaratonas, definidas como corridas com distâncias acima dos 42
km da maratona, atletas comem consistentemente: suplementos calóricos
em gel, barras ricas em carboidratos e proteína, queijo, sopas,
sanduíches com manteiga de amendoim etc. Porém, nenhum treino ou
nutrição durante a atividade física pode eliminar definitivamente
o Ponto de Ruptura. Com o treinamento rigoroso, ocorre raramente, e
atletas de elite são mais imunes devido ao seu imenso preparo
físico. (Alguns maratonistas e ultramaratonistas correm em torno de
150 a 200 km por semana. Infelizmente, pessoas com vidas normais não
têm tempo para essa dedicação toda.)
Mas o Ponto de Ruptura existe para todos,
novatos ou campeões mundiais. Se você tiver a persistência e a
sorte de alcançá-lo, algo transformador ocorrerá com você. Tanto
assim que, para alguns de nós, a busca pelo Ponto de Ruptura é uma
obsessão. A grande maioria das pessoas não entende a significância
do Ponto de Ruptura. Até mesmo os que se exercitam regularmente
tendem a moderar a intensidade quando o coração começa a bater
muito rápido ou o corpo começa a doer. Alguns até toleram certa
dose de dor, sabendo que ela traz os muitos benefícios do esporte.
Mas nada de muito radical, certo? Esse tipo de atividade é
perfeitamente válido se o seu objetivo é atingir um determinado
nível de forma física. Mas e se você quiser ir além, treinar para
aprender a se sentir confortável com o desconforto? Ao contrário da
“parede”, o ponto onde a maioria das pessoas desiste, chegar ao
Ponto de Ruptura é apenas o começo de um processo de profunda
transformação física e mental, em que a dor física é inevitável.
E não tem nada a ver com ser masoquista.
Até uns dez anos atrás, diria que esse
tipo de atividade é uma grande bobagem. Para que esse sofrimento
todo? Por que correr 80 km em trilhas montanhosas, ou participar de
um Ironman, ou nadar quilômetros em mar aberto? Para que participar
de uma corrida de obstáculos do tipo Spartan, subindo cordas, se
arrastando na lama sob arame farpado, carregando sacos de areia
ladeira acima, pulando muros de 2 metros e outros desafios igualmente
cruéis? Por incrível que pareça, milhões de pessoas praticam esse
tipo de esporte. “Você vai entender na linha de chegada”, diz o
lema da corrida Spartan.
Para entender o seu significado, você
precisa lutar para chegar lá. A mágica ocorre na experiência do
esforço, na vivência do sofrimento, na integração do corpo e da
mente, no sucesso final, seja ele a vitória ou apenas completar a
corrida, cruzando a linha de chegada. Em 2013, comecei a treinar para
praticar alguns desses esportes. Tudo começou quando corri minha
primeira meia maratona em 2011, aos 52 anos. Até então, corria 8 ou
10 quilômetros umas três vezes por semana e olhe lá. Tanto meu
sogro quanto minha esposa são corredores, e insistiam que eu deveria
correr também. Resolvi tentar e comecei a treinar sério para minha
meia maratona. Tinha três meses para me preparar.
Quando cruzei a linha de chegada em
1h58m, entendi que algo profundo havia mudado. Percebi logo que é
difícil explicar em palavras por que esse tipo de esporte se tornou
tão significativo para mim. E que queria tentar desafios mais
intensos ainda. Outros atletas de resistência dizem o mesmo. Quando
comento com amigos ou família que completei uma corrida de 80 km nos
Alpes franceses ou em trilhas montanhosas no Canadá, ou uma “Spartan
Beast” no Lago Tahoe, nos EUA, me olham como se fosse louco. “Cara,
mas isso não é coisa para gente muito mais jovem?” Não,
respondo. Tem muita gente de 50 anos fazendo. Alguns até com 60.
(Hoje me incluo neste grupo!) “Quanto tempo demorou para
terminar?”, perguntam. Umas 12 horas, mais ou menos, respondo.
E vejo a expressão no rosto deles, que
diz tudo: “Que maluco, se matando nas trilhas em vez de beber uma
boa cervejinha e comer uma linguiça calabresa...” Não é fácil
entender o impacto emocional do Ponto de Ruptura. Aliás, “entender”
não é a palavra certa; é necessário viver a experiência para
então dimensioná-la. Corridas de 80 ou 100 quilômetros nem são as
mais intensas. Existem exemplos bem mais extremos. Em Quioto, no
Japão, uma cidade repleta de templos belíssimos, existe uma escola
budista conhecida como Tendai. Há quase mil anos, seus monges
residem numa montanha nos arredores da cidade, conhecida como Monte
Hiei. Alguns deles, após passar por um processo de seleção
extremamente rigoroso, embarcam numa peregrinação que usa o Ponto
de Ruptura como portal para atingir nirvana, um estado iluminado de
transcendência espiritual. Nada no mundo dos esportes de resistência
se compara ao que fazem esses monges maratonistas.
Os escolhidos (e são muito poucos)
embarcam no Desafio de Mil Dias, Sennichi Kaihogyo, um circuito de
sete anos em que devem percorrer uma distância semelhante à
circum-navegação da Terra (cerca de 40 mil quilômetros) enquanto
rezam e cantam em mais de 250 pontos sagrados na montanha:
cachoeiras, fontes naturais, árvores sagradas, riachos, altares,
templos. Existem dois circuitos, um mais longo, de 46.570 km, e o
mais “curto”, de 38.630 km. Nos três primeiros anos, os monges
devem percorrer 30 a 40 km por dia por cem dias consecutivos. No
quarto e quinto ano, devem fazer o mesmo em dois blocos de cem dias.
No sexto ano, a distância aumenta para 60 km por cem dias. E, no
sétimo, aumenta ainda mais, 84 km por cem dias e mais 30 ou 40 km
por mais cem. Começam às duas da manhã, vestindo apenas um roupão
e sandálias de palha.
Sua dieta consiste principalmente em sopa
missô e arroz. Os que completam o desafio (e existem outros
estágios, que incluem não dormir, comer e beber por sete dias) são
considerados Budas em vida e venerados como santos. Visitei o Monte
Hiei com minha esposa em janeiro de 2017. Sendo ultramaratonistas,
queríamos correr nas mesmas trilhas e encontrar o único monge vivo
hoje que completou o circuito. No dia que chegamos, uma forte nevasca
cobriu a montanha de branco e espantou os turistas. Éramos só nós,
os monges e alguns poucos devotos. A subida até o pico por bondinho
já foi mágica, como se tivéssemos entrado numa realidade paralela.
Fomos direto para o nosso quarto mudar de roupa para correr.
Em minutos estávamos nas trilhas, mapa
na mão, boquiabertos com a beleza do lugar. Subidas íngremes e
muita neve tornaram a corrida bem difícil, e após uns 15 km
estávamos cansados. Cercados de silêncio e branco, resolvemos mesmo
assim continuar por uma trilha mais estreita. Ao longo dela, notamos
alguns monumentos de pedra; sabíamos o que eram. Restos dos monges
que falharam no Desafio dos Mil Dias e que, até o final do século
XIX, tinham que se sacrificar em desgraça. Felizmente, você não
precisa ser um monge Tendai e correr 40 mil quilômetros para chegar
ao Ponto de Ruptura. Se você tiver a disciplina mental de persistir
além da dor, que, acredite, pode ser agonizante, talvez chegue lá.
O processo não é fácil. Seu corpo vai implorar para que você
pare. Sua mente vai ser invadida por pensamentos terríveis, tentando
convencê-lo de que isso é uma loucura inútil, de que você vai
acabar se machucando; até, quem sabe, morrer. O que um monge Tendai
faria? Continuaria marchando em frente com disciplina, rezando mais
alto e com mais fervor, empurrando para longe os pensamentos
nefastos. Mais importante ainda, manifestaria sua gratidão pelo
momento, por estar vivendo sua vida com tanta intensidade, buscando
um estado de transcendência espiritual.
Saberia que estar nas trilhas, cercado de
tanta beleza natural, é venerar a Natureza em corpo e espírito, um
privilégio. E que fazer isso almejando o Ponto de Ruptura é a forma
mais pura de devoção, quando todas as máscaras falsas com que
cercamos nosso ego caem, permanecendo apenas sua essência mais
profunda, o eu despido. Temos reservas de energia e perseverança
muito além do que imaginamos. Ao nos aproximar do Ponto de Ruptura,
sentimos uma espécie de liberação, uma leveza inesperada que, em
muitos, produz uma explosão de emoções. Naquele momento, a dor
desaparece, o rosto se abre num enorme sorriso, e os olhos brilham
com nova intensidade. Além do Ponto de Ruptura, você encontra um
novo você. O mais belo do processo é que não termina. Existe
sempre um novo desafio, uma nova montanha na distância, que você
mal pode esperar para explorar, o corpo pleno de energia e o coração
sorrindo.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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