terça-feira, 1 de junho de 2021

Além do ponto de ruptura: quando desafios físicos se transformam em busca espiritual

Para cada um de nós, existe um ponto além do qual o cansaço físico se transforma em algo diferente. Este ponto não é fixo, mudando com o nível de preparo físico. Quanto mais em forma, mais a pessoa tem que trabalhar para alcançá-lo. Este ponto é como uma montanha, perdida na distância, coberta por uma densa neblina. Se você consegue alcançá-lo, jamais será o mesmo. É o que chamo de Ponto de Ruptura. Note que o Ponto de Ruptura não é como a “parede”, velha conhecida dos atletas de esportes de resistência, como maratonas ou triátlons de longa distância como o Ironman. A parede ocorre quando o seu corpo esgota as reservas musculares de glicogênio como combustível.
Quando isso acontece, a parede vem em minutos. Atletas bem treinados, especialmente os ultramaratonistas, sabem como evitar a parede. O segredo é uma combinação de treino e nutrição durante a atividade física. Para corredores, o treino consiste em aumentar gradativamente a distância sem usar suplementos nutritivos. Já a nutrição durante a atividade deve incluir comidas sólidas e outros suplementos calóricos e eletrolíticos. Em ultramaratonas, definidas como corridas com distâncias acima dos 42 km da maratona, atletas comem consistentemente: suplementos calóricos em gel, barras ricas em carboidratos e proteína, queijo, sopas, sanduíches com manteiga de amendoim etc. Porém, nenhum treino ou nutrição durante a atividade física pode eliminar definitivamente o Ponto de Ruptura. Com o treinamento rigoroso, ocorre raramente, e atletas de elite são mais imunes devido ao seu imenso preparo físico. (Alguns maratonistas e ultramaratonistas correm em torno de 150 a 200 km por semana. Infelizmente, pessoas com vidas normais não têm tempo para essa dedicação toda.)
Mas o Ponto de Ruptura existe para todos, novatos ou campeões mundiais. Se você tiver a persistência e a sorte de alcançá-lo, algo transformador ocorrerá com você. Tanto assim que, para alguns de nós, a busca pelo Ponto de Ruptura é uma obsessão. A grande maioria das pessoas não entende a significância do Ponto de Ruptura. Até mesmo os que se exercitam regularmente tendem a moderar a intensidade quando o coração começa a bater muito rápido ou o corpo começa a doer. Alguns até toleram certa dose de dor, sabendo que ela traz os muitos benefícios do esporte. Mas nada de muito radical, certo? Esse tipo de atividade é perfeitamente válido se o seu objetivo é atingir um determinado nível de forma física. Mas e se você quiser ir além, treinar para aprender a se sentir confortável com o desconforto? Ao contrário da “parede”, o ponto onde a maioria das pessoas desiste, chegar ao Ponto de Ruptura é apenas o começo de um processo de profunda transformação física e mental, em que a dor física é inevitável. E não tem nada a ver com ser masoquista.
Até uns dez anos atrás, diria que esse tipo de atividade é uma grande bobagem. Para que esse sofrimento todo? Por que correr 80 km em trilhas montanhosas, ou participar de um Ironman, ou nadar quilômetros em mar aberto? Para que participar de uma corrida de obstáculos do tipo Spartan, subindo cordas, se arrastando na lama sob arame farpado, carregando sacos de areia ladeira acima, pulando muros de 2 metros e outros desafios igualmente cruéis? Por incrível que pareça, milhões de pessoas praticam esse tipo de esporte. “Você vai entender na linha de chegada”, diz o lema da corrida Spartan.
Para entender o seu significado, você precisa lutar para chegar lá. A mágica ocorre na experiência do esforço, na vivência do sofrimento, na integração do corpo e da mente, no sucesso final, seja ele a vitória ou apenas completar a corrida, cruzando a linha de chegada. Em 2013, comecei a treinar para praticar alguns desses esportes. Tudo começou quando corri minha primeira meia maratona em 2011, aos 52 anos. Até então, corria 8 ou 10 quilômetros umas três vezes por semana e olhe lá. Tanto meu sogro quanto minha esposa são corredores, e insistiam que eu deveria correr também. Resolvi tentar e comecei a treinar sério para minha meia maratona. Tinha três meses para me preparar.
Quando cruzei a linha de chegada em 1h58m, entendi que algo profundo havia mudado. Percebi logo que é difícil explicar em palavras por que esse tipo de esporte se tornou tão significativo para mim. E que queria tentar desafios mais intensos ainda. Outros atletas de resistência dizem o mesmo. Quando comento com amigos ou família que completei uma corrida de 80 km nos Alpes franceses ou em trilhas montanhosas no Canadá, ou uma “Spartan Beast” no Lago Tahoe, nos EUA, me olham como se fosse louco. “Cara, mas isso não é coisa para gente muito mais jovem?” Não, respondo. Tem muita gente de 50 anos fazendo. Alguns até com 60. (Hoje me incluo neste grupo!) “Quanto tempo demorou para terminar?”, perguntam. Umas 12 horas, mais ou menos, respondo.
E vejo a expressão no rosto deles, que diz tudo: “Que maluco, se matando nas trilhas em vez de beber uma boa cervejinha e comer uma linguiça calabresa...” Não é fácil entender o impacto emocional do Ponto de Ruptura. Aliás, “entender” não é a palavra certa; é necessário viver a experiência para então dimensioná-la. Corridas de 80 ou 100 quilômetros nem são as mais intensas. Existem exemplos bem mais extremos. Em Quioto, no Japão, uma cidade repleta de templos belíssimos, existe uma escola budista conhecida como Tendai. Há quase mil anos, seus monges residem numa montanha nos arredores da cidade, conhecida como Monte Hiei. Alguns deles, após passar por um processo de seleção extremamente rigoroso, embarcam numa peregrinação que usa o Ponto de Ruptura como portal para atingir nirvana, um estado iluminado de transcendência espiritual. Nada no mundo dos esportes de resistência se compara ao que fazem esses monges maratonistas.
Os escolhidos (e são muito poucos) embarcam no Desafio de Mil Dias, Sennichi Kaihogyo, um circuito de sete anos em que devem percorrer uma distância semelhante à circum-navegação da Terra (cerca de 40 mil quilômetros) enquanto rezam e cantam em mais de 250 pontos sagrados na montanha: cachoeiras, fontes naturais, árvores sagradas, riachos, altares, templos. Existem dois circuitos, um mais longo, de 46.570 km, e o mais “curto”, de 38.630 km. Nos três primeiros anos, os monges devem percorrer 30 a 40 km por dia por cem dias consecutivos. No quarto e quinto ano, devem fazer o mesmo em dois blocos de cem dias. No sexto ano, a distância aumenta para 60 km por cem dias. E, no sétimo, aumenta ainda mais, 84 km por cem dias e mais 30 ou 40 km por mais cem. Começam às duas da manhã, vestindo apenas um roupão e sandálias de palha.
Sua dieta consiste principalmente em sopa missô e arroz. Os que completam o desafio (e existem outros estágios, que incluem não dormir, comer e beber por sete dias) são considerados Budas em vida e venerados como santos. Visitei o Monte Hiei com minha esposa em janeiro de 2017. Sendo ultramaratonistas, queríamos correr nas mesmas trilhas e encontrar o único monge vivo hoje que completou o circuito. No dia que chegamos, uma forte nevasca cobriu a montanha de branco e espantou os turistas. Éramos só nós, os monges e alguns poucos devotos. A subida até o pico por bondinho já foi mágica, como se tivéssemos entrado numa realidade paralela. Fomos direto para o nosso quarto mudar de roupa para correr.
Em minutos estávamos nas trilhas, mapa na mão, boquiabertos com a beleza do lugar. Subidas íngremes e muita neve tornaram a corrida bem difícil, e após uns 15 km estávamos cansados. Cercados de silêncio e branco, resolvemos mesmo assim continuar por uma trilha mais estreita. Ao longo dela, notamos alguns monumentos de pedra; sabíamos o que eram. Restos dos monges que falharam no Desafio dos Mil Dias e que, até o final do século XIX, tinham que se sacrificar em desgraça. Felizmente, você não precisa ser um monge Tendai e correr 40 mil quilômetros para chegar ao Ponto de Ruptura. Se você tiver a disciplina mental de persistir além da dor, que, acredite, pode ser agonizante, talvez chegue lá. O processo não é fácil. Seu corpo vai implorar para que você pare. Sua mente vai ser invadida por pensamentos terríveis, tentando convencê-lo de que isso é uma loucura inútil, de que você vai acabar se machucando; até, quem sabe, morrer. O que um monge Tendai faria? Continuaria marchando em frente com disciplina, rezando mais alto e com mais fervor, empurrando para longe os pensamentos nefastos. Mais importante ainda, manifestaria sua gratidão pelo momento, por estar vivendo sua vida com tanta intensidade, buscando um estado de transcendência espiritual.
Saberia que estar nas trilhas, cercado de tanta beleza natural, é venerar a Natureza em corpo e espírito, um privilégio. E que fazer isso almejando o Ponto de Ruptura é a forma mais pura de devoção, quando todas as máscaras falsas com que cercamos nosso ego caem, permanecendo apenas sua essência mais profunda, o eu despido. Temos reservas de energia e perseverança muito além do que imaginamos. Ao nos aproximar do Ponto de Ruptura, sentimos uma espécie de liberação, uma leveza inesperada que, em muitos, produz uma explosão de emoções. Naquele momento, a dor desaparece, o rosto se abre num enorme sorriso, e os olhos brilham com nova intensidade. Além do Ponto de Ruptura, você encontra um novo você. O mais belo do processo é que não termina. Existe sempre um novo desafio, uma nova montanha na distância, que você mal pode esperar para explorar, o corpo pleno de energia e o coração sorrindo.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

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