Bem sei que é uma vaidade dizer em plena
primavera que eu sei o que é primavera. Às vezes porém sou tão
humilde que os outros me chamam a atenção. É uma humildade feita
de gratidão talvez excessiva, é feita de um eu de criança, de
susto também de criança. Mas, desta vez, quando percebi que estava
humilde demais com a alegria que me era dada pela vinda da primavera
chuvosa, dessa vez apossei-me do que é meu e dos outros.
Sei o que é primavera porque sinto um
perfume de pólen no ar, que talvez seja o meu próprio pólen, sinto
estremecimentos à toa quando um passarinho canta, e sinto que sem
saber eu estou reformulando a vida. Porque estou viva. A primavera
torturante, límpida e mortal que o diga, ela que me encontra cada
ano tão pronta para recebê-la. Bem sei que é uma perturbação de
sentidos. Mas, por que não ficar tonta? Aceito esta minha cabeça à
chuva tremeluzente da primavera, aceito que eu existo, aceito que os
outros existam porque é direito deles e porque sem eles eu morreria,
aceito a possibilidade do grande Outro existir apesar de eu ter
rezado pelo mínimo e não me ter sido dado.
Sinto que viver é inevitável. Posso na
primavera ficar horas sentada fumando, apenas sendo. Ser às vezes
sangra. Mas não há como não sangrar pois é no sangue que sinto a
primavera. Dói. A primavera me dá coisas. Dá do que viver. E sinto
que um dia na primavera é que vou morrer. De amor pungente e coração
enfraquecido.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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