Uma tarde de maio de 1944 um jovem de
vinte anos aguardava sua noiva numa confeitaria da moda na
Cinelândia. Ela telefonara para o seu novo emprego, marcando um
encontro por motivo da maior importância, que lhe diria
pessoalmente.
Que poderia ser? Ele fazia mil
conjecturas enquanto esperava, desistindo do sorvete que preferiria
tomar, em favor de um vermute, que lhe daria um ar mais adulto, como
certamente a ocasião exigia.
– Uma audiência com o presidente –
ela foi informando logo. – Para agradecer a nomeação.
Ir ao presidente agradecer algo que não
lhe pedira significava para ele uma abdicação. A nomeação para o
rendoso cargo surgira como uma injunção do casamento – por isso
havia concordado. Mas agradecer ao ditador, que ele repudiava? (Além
do mais o cargo nem tão rendoso era assim, como já tivera ocasião
de verificar.) Nem por isso seus ideais democráticos de estudante
haviam morrido, continuava a ter lá as suas convicções.
Ele seguia de cara amarrada no carro
oficial, ao lado da moça: ela o havia vencido, mas não o
convencera. Ganharam a rua Paissandu em direção ao Palácio
Guanabara, residência presidencial naquele tempo. De súbito ele se
inclinou para a frente e ordenou ao motorista que parasse:
– Você vai sozinha – disse, já
abrindo a porta. – Te espero na praia.
Estavam quase transpondo os portões do
palácio quando ele saltou e se afastou rapidamente sem olhar para
trás. Ouviu o carro dando partida e foi caminhando em direção à
praia. Mal vencera a segunda quadra, o carro voltava, detendo-se a
seu lado:
– Mandaram buscar o senhor – e o
motorista já saltava para abrir-lhe a porta.
Apanhado de surpresa, deu consigo já
dentro do carro, que seguia de volta ao palácio. Na portaria um
oficial de gabinete à sua espera o introduziu numa saleta onde a
noiva o aguardava.
– Que aconteceu? – perguntou,
intrigado.
– O presidente mandou te buscar. Ele te
viu da janela.
A primeira vez que vi Getúlio Vargas de
perto (em Belo Horizonte, 1943) eu usava uma farda de gala
(emprestada) de oficial do Exército. A indumentária se impusera por
duas razões: queria não deixar dúvidas de que havia terminado meu
curso no CPOR, e não tinha casaca, que a ocasião exigia: tratava-se
de casamento de uma contraparente, da qual o presidente era padrinho.
– Pronto para a guerra, tenente? –
disse ele com um sorriso, quando lhe fui apresentado.
O sorriso me pareceu estereotipado como o
de uma máscara. Este mesmo sorriso surpreendo agora em várias
sequências de um filme sobre a sua vida, atualmente em exibição.
Trata-se de um documentário com precioso material de pesquisa e
cheio de interesse – mas nem por isso saio do cinema menos
acabrunhado. A direção, embora revelando competência e
sensibilidade, pareceu-me ter cometido, com a melhor das intenções,
a falta de Jorge Ileli noutro excelente filme sobre o mesmo assunto
que vi há tempos numa exibição particular. Ambos praticamente
esqueceram a ditadura de Vargas e passaram como gato sobre brasas
pelas verdadeiras razões de seu suicídio. Com isso contribuem para
perpetuar um mito em que eles próprios parecem acreditar.
E saio acabrunhado do cinema porque o que
eu pude ver foi a evocação de uma triste fase de nossa História: a
vaidade, a ambição, o cinismo paternalista, o culto à
personalidade, as presepadas cívicas, as fanfarrices do Poder, as
diversões mundanas do mundo oficial – todo esse caldo de cultura
que nos restou de uma época inspirada no homem cuja única
preocupação foi sempre a de perpetuar-se no Poder.
Depois de uma das noites mais agitadas de
nossa História, a manhã se firmou sobre a cidade, mas o silêncio
continuou nos salões do Palácio do Catete. De repente se ouviu um
tiro, vindo dos aposentos presidenciais. Eram exatamente 8 horas e 35
minutos do dia 24 de agosto de 1954.
Durante dez anos acreditei que esse
disparo marcasse realmente um momento de grandeza na vida pública do
homem que sempre ignorou as torpezas praticadas à sua sombra: as da
ditadura que brutalizou o país de 1937 a 1945 e as que o levaram à
morte em 1954. Hoje acredito que ele estava apenas saindo da vida
para entrar na História, como disse em sua famosa carta-testamento.
A ser ela autêntica – do que, aliás, nunca me convenci – ele
buscou deixar atrás de si um legado de desentendimento e desordem
que confundisse a nação e engrandecesse a sua memória: après
moi, le déluge.
Recentemente, vinte penosos anos depois,
os jornais se encheram de depoimentos daqueles que viveram ao seu
redor – todos repassados de um respeito que ia da simpatia ao
fervor. Mas nenhum me impressionou tanto como o que me deu um dia
Juarez Távora: contou-me que durante seus despachos com o
presidente, ficava estupefato com a quantidade de papéis que ele
assinava. Getúlio chamara a si a tarefa de sacramentar com a sua
assinatura todos os atos oficiais praticados, até mesmo os da mais
simples rotina, como a nomeação ou dispensa de um servente. Parecia
ter prazer em ver seu próprio nome brotar caprichosamente da pena,
como autoridade suprema da Nação. E entrava pela madrugada adentro,
às vezes a cabecear de sono, assinando, assinando…
O jovem casal continuava aguardando na
antessala do palácio, silencioso e contrito como numa sacristia à
espera do padre para a confissão. Certamente alguém viria buscá-los
para a audiência presidencial, em algum imenso salão no recesso do
palácio. Era o que ele pensava, procurando relaxar o corpo na
poltrona e tentando organizar mentalmente o que diria. Decidiu não
dizer nada, ela que falasse por ambos. Mais aliviado, pôs-se a
observar o pequeno gabinete em que se achavam.
Poltronas de couro marrom, uma pesada
mesa de madeira trabalhada, um tinteiro de prata, um mata-borrão. Ao
fundo, uma cortina de veludo cor de vinho, de enfeites dourados,
cobrindo a parede do teto ao chão, como a de um palco. Súbito
percebeu que ela se agitava, abrindo-se no meio, arrepanhada por uma
mão branca e delicada. De uma porta entreaberta – era na realidade
um reposteiro – surgiu o presidente. Vestia um terno branco de
trespasse um tanto apertado, o que o fazia mais obeso, e trazia um
charuto na mão. A pele do rosto bem barbeado era fina e rosada, como
sob uma maquilagem de teatro. A sua entrada em cena, a sua postura, o
charuto erguido no ar, o sorriso fixo, a cabeça levemente inclinada
para um lado – todo ele parecia uma figura de teatro – como a
daqueles cômicos de revista na praça Tiradentes que o imitavam: era
a caricatura de si mesmo. Cumprimentaram-se, e a moça foi direta ao
assunto, agradecendo a nomeação. O presidente voltou-se para ele:
– Estimo que estejas satisfeito. Já
tomaste posse?
– Já – e, irresistível, só lhe
vinha como resposta a lembrança de uma das anedotas a ele
atribuídas. – Mas ainda não recebi os atrasados.
O presidente meneava a cabeça, ar
complacente, como quem concorda sem prestar atenção. Mais algumas
palavras de cortesia trocadas com a moça e se despediu,
desaparecendo atrás da cortina. O rapaz estava perplexo: a audiência
não durara três minutos. Desde então, nunca mais o viu.
E até hoje não entendeu por que ele fez
questão de mandar buscá-lo.
Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula
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