Na noite de 11 de novembro de 1872, na
comarca do Serro Frio, em Minas Gerais, deram-se fatos de pavoroso
suceder, referidos nas folhas da época e exarados nas Efemérides.
Dito que um fenômeno luminoso se projetou no espaço, seguido de
estrondos, e a terra se abalou, num terremoto que sacudiu os altos,
quebrou e entulhou casas, remexeu vales, matou gente sem conta; caiu
outrossim medonho temporal, com assombrosa e jamais vista inundação,
subindo as águas de rio e córregos a sessenta palmos da plana. Após
os cataclismos, confirmou-se que o terreno, em raio de légua, mudara
de feições: só escombros de morros, grotas escancaradas, riachos
longe transportados, matos revirados pelas raízes, solevados novos
montes e rochedos, fazendas sovertidas sem resto — rolamentos de
pedra e lama tapando o estado do chão. Mesmo a distância do astroso
arredor, a muita criatura e criação pereceu, soterradas ou
afogadas. Outros vagavam ao deus-dar, nem sabendo mais, no avesso, os
caminhos de outrora.
Donde, no termo de semana, dia de São
Félix, confessor, o caso de vir ao pátio da Fazenda do Casco, de
Hilário Cordeiro, com sede quase dentro da rua do Arraial do
Oratório, um coitado fugitivo desses, decerto persuadido da fome: o
moço, pasmo. O que foi quando subitamente, e era moço de distintas
formas, mas em lástima de condições, sem o restante de trapos com
que se compor, pelo que enrolado em pano, espécie de manta de cobrir
cavalos, achada não se supõe onde; e, assim em acanho, foi ele
avistado, de muito manhã, aparecendo e se escondendo por detrás do
cercado das vacas. Tão branco; mas não branquicelo, senão que de
um branco leve, semidourado de luz: figurando ter por dentro da pele
uma segunda claridade. Sobremodo se assemelhava a esses estrangeiros
que a gente não depara nem nunca viu; fazia para si outra raça.
Seja que da maneira ainda hoje se conta, mas transtornado incerto,
pelo decorrer do tempo, porquanto narrado por filhos ou netos dos que
eram rapazes, quer ver que meninos, quando em boa hora o conheceram.
Hilário Cordeiro, sendo homem cordial
para os pobres, temente e bom, e mais ainda nesse pós-tempo de
calamidade, em que parentes dele mesmo tinham sofrido morte e arrasos
totais, não duvidou em lhe deferir hospedamento, cuidando de
adequar-lhe roupa e botinas, desde lhe dar o de comer. E o que era
mister de benemerência, porquanto o moço, com os sustos e baques,
passara por desgraça extraordinária: perdida a completa memória de
si, sua pessoa, além do uso da fala. Esse moço, pois, para ele
sendo igual matéria o futuro que o passado? Nada ouvindo, não
respondia, nem que não, nem que sim; o que era coisa de compaixão e
lamentosa. Nem fizesse por entender, isto é, entendia, às vezes ao
contrário, os gestos. Dado que uma graça já devia de ter, não se
lhe podia pôr outro nome, não adivinhado; nem se soubesse de que
geração fosse — o filho de nenhum homem.
De tanto que chegou lá, e nos dias,
compareceram os vários moradores, por sua causa, de há-de o que
achassem. Tonto, não era. Só aquela intenção sonhosa, o certo
cansaço do ar. Surpreendente, contudo, o que assaz observava,
resguardado, até espreitasse por miúdo os vezos de coisas e
pessoas; o que, porém, melhor se viu pelo depois. Gostou-se dele.
Quiçá mais o preto José Kakende, escravo meio alforriado de um
músico sem juízo, e ele próprio de idéia conturbada; por último,
então, delirado varrido, pelo fato de padecidos os grandes pavores,
no lugar do Condado: girava agora por aqui e ali, a pronunciar
advertências e desorbitadas sandices — querendo pôr em pé de
verdade portentosa aparição que teria enxergado, nas margens do Rio
do Peixe, na véspera das catástrofes. Do moço, pois, só não se
engraçou, antes já de abinício o malquerendo — e o reputando por
vago e malfeitor a rebuço, digno, noutros tempos, de degredo em
África e nos ferros de el-rei — um chamado Duarte Dias, pai da
mais bela moça, por nome Viviana; e do qual se sabia ser homem de
gênio forte, além de maligno e injusto, sobre prepotências:
naquele coração não caía nunca uma chuvinha. Não se lhe deu
exata atenção.
Mas levaram o moço à missa, e ele
portou-se, não fez modos de crer nem increr. Cantoria e músicas do
coro, escutasse, no sério sentimental. Triste, dito, não; mas: como
se conseguisse, em si, mais saudade que as demais pessoas, saudade
inteirada, a salvo do entendimento, e que por tanto se apurava numa
maior alegria — coração de cão com dono. Seu sorriso às vezes
parava, referido a outro lugar, outro tempo. Sorrindo mais com o
rosto, senão com os olhos; suposto que nunca se lhe viram os dentes.
Padre Bayão, antes de com ele bondosamente conferir, de improviso
lhe representou diante o signo-da-cruz: e ele não mostrou o
desagrado da matéria. Estava nas altas atmosferas, aumentava a sua
presença. “Comparados com ele, nós todos, comuns, temos os
semblantes duros e o aspecto de má fadiga constante.” Traços
estes consignados pelo mesmo padre, em carta de punho e firma, para
testemunho do esquisito, ao cônego Lessa Cadaval, da Sé de Mariana.
Na qual igualmente dá menção do preto José Kakende, que na mesma
ocasião se lhe acercou, com altas e despauteradas falas, por impor
sua visão da beira do rio: ... “o rojo de vento e grandeza de
nuvem, em resplandor, e nela, entre fogo, se movendo uma artimanha
amarelo-escura, avoante trem, chato e redondo, com redoma de vidro
sobreposta, azulosa, e que, pousando, de dentro, desceram os
Arcanjos, mediante rodas, labaredas e rumores.” E, com o mesmo
risonho José Kakende, veio Hilário Cordeiro trazendo de volta para
casa o moço, num extrato de desvelo, como se o vero pai dele fosse.
Mas à porta da igreja se achava um cego,
Nicolau, pedidor, o qual, o moço em o vendo, olhou-o sem medida e
entregadamente — contam que seus olhos eram cor-de-rosa! — e foi
em direitura a ele, dando-lhe rápida partícula, tirada da
algibeira. Ora, estando o cego debaixo do sol, e corrido de suor, a
almas cristãs devia de causar meditação o contraste de tanto
padecer o calor do astro-rei aquele que nem as belezas da luz podia
gozar. O cego, apalpando a dádiva na mão, em guisa de cogitar em
que estúrdia casta de moeda ela consistisse, e se dissertando logo
que nenhuma, a levou prestes à boca; ao que, seu menino guia o
advertiu: que não seria artigo de se comer, mas espécie de caroço
de árvore. Então o cego guardou, com irados ciúmes e por diversos
meses, aquela semente, que só foi plantada após o remate dos fatos
aqui ainda por narrar: e deu um azulado pé de flor, da mais rara e
inesperada: com entreaspecto de serem várias flores numa única,
entremeadas de maneira impossível, num primor confuso, e, as cores,
ninguém a respeito delas concordou, por desconhecidas no século;
definhada, com pouco, e secada, sem produzir outras sementes nem
mudas, e nem os insetos a sabiam procurar.
No que, porém, acabada de se passar
aquela cena, surgia no adro Duarte Dias, mais uns companheiros e
serviçais, para opor a surpresa de uma exigência e fazer problema:
queria carregar consigo o moço, sobre fundamento de que, pela
brancura da tez e delicadezas mais, devia de ser um dos Rezendes,
seus parentes, desaparecidos no Condado, no terremoto; e que, pois,
até o reconhecimento de alguma notícia, competia-lhe o ter em
custódia, pelo costume. Sendo que Hilário Cordeiro pronto contestou
o postulado, e o argumento por um nada terminava em desavença séria,
Duarte Dias porfiando e se excedendo, do que só tornou em si ante o
parecer de Quincas Mendanha, do Serro, notável na política e
provedor da Irmandade.
E, todavia, de seu zelo, mais para
diante, Hilário Cordeiro iria ter melhor razão, eis que tudo lhe
passou a dar sorte, quer na saúde e paz, em sua casa, seja no assaz
prosperar dos negócios, cabedais e haveres. E não que o moço lhe
facultasse ajuda, na sujeição de serviço ou no vagar a algum
ofício, em que, de feito, nem pudesse dar descargo de si — com as
mãos não calejadas, alvas e finas, de homem-de-palácio. Ele andava
muito na lua, passeava por todo o lugar e alhonde, praticando aquela
liberdade vaporosa e o espírito de solidão; parecesse alquebrado de
um feitiço, segundo os dizeres do povo. Não embargando que grandes
partes tivesse, para o que fosse de funções de engenhos,
ferramentas e máquinas, ao que se prestava, fazendo muitas invenções
e desembaraçando as ocasiões, ladino, cuidoso e acordado. De
estranha memória, só, pois, a de olhar ele sempre para cima, o
mesmo para o dia que para a noite — espiador de estrelas. Que
vezes, porém, mais lhe prouvesse o divertimento de acender fogos,
sendo de reparo o quanto se influiu, pelo São João, nas tantas e
tamanhas fogueiras de festa.
Do que adveio, justo, o caso da moça
Viviana, sempre mal contado. O que foi quando ele lá apareceu,
acompanhado do preto José Kakende, e deu com a moça, mui bonita,
mas que não se divertia ao igual das outras: e ele se chegou muito a
ela, gentil e espantoso, lhe pôs a palma da mão no seio,
delicadamente. Ora, sendo assim a moça Viviana a mais formosa,
tinha-se para admirar que a beleza do feitio lhe não servisse para
transformar, no interior, a própria e vagarosa tristeza. Mas, Duarte
Dias, o pai, e que a isso assitia, prorrompeu em pleiteantes brados
de: — “Tem que casar! Agora, tem de casar!” — com instância.
Afirmava que o moço era homem, e um, e ainda mancebo, e lhe infamara
a filha, devendo-lhe de a tomar por consorte e arcar com o estado de
casado. O moço ouvia, de boa concórdia, e nem por isso. Mas a grita
de Duarte Dias só teve termo, quando o padre Bayão, e outros dos
mais velhos, lhe rejeitaram tão descabidas fúrias e insensatez.
Também a moça Viviana, com radiosos sorrisos, o serenava. Ela, que,
a partir dessa hora, despertou em si um enfim de alegria, para todo o
restante de sua vida, donde um dom. Apenas que, Duarte Dias — o que
não se entende — ia produzir ainda outros lances de estupefacção,
eis-aqui.
De tal guisa que, para o alvoroço de
todos, no dia da missa da Dedicação de Nossa Senhora das Neves e
vigília da Transfiguração, 5 de agosto, ele veio à Fazenda do
Casco, requerendo falar com Hilário Cordeiro. Também o moço lá
estava. Outrovisto, e nunca desairoso — a gente espiava, e pensava
num logo luar. Então, Duarte Dias declarou: suplicava deixassem-no
levar o moço, para sua casa. Que queria assim, e necessitava, muito,
não por ambicioneiro ou impostor, nem por interesses somenos, mas
por a ele ter cobrado, com contrições de escrúpulo, a fortíssima
estima de afeição! Dizia, e desgovernava as palavras, alterado,
enquanto que dos olhos lhe corriam bastas lágrimas. Ora, não se
compreendendo o descabelo de passo tão contrariado: o de um homem
que, para manifestar o amor, ainda não dispunha mais que dos
arrebatados meios e modos da violência. Mas, o moço, claro como o
olho do sol, o pegou da mão, e, com o preto José Kakende, o foi
conduzindo pelos campos — depois se soube que a terras dele mesmo,
Duarte, aonde à tapera de uma olaria. E lá indicou que mandasse
cavar: com o que se achou, ali, uma grupiara de diamantes; ou um
panelão de dinheiro, segundo diversa tradição. Por arte de qual
prodígio, Duarte Dias pensou que ia virar riquíssimo, e mudado de
fato esteve, da data por diante, em homem sucinto, virtuoso e
bondoso, suspendentemente, consoante o asseverar sobremaravilhado dos
coevos.
Mas, por contra, no dia da venerada Santa
Brígida, de voz comum de novo dele se soube: o moço, plácido.
Disse-se, que saíra, na véspera, de paragem, pelos altos, num de
seus desapareceres; era um tempo de trovoadas secas. José Kakende
contava somente que o ajudara a acender, de secreto, com formato,
nove fogueiras; e, mais, o Kakende soubesse apenas repetir aquelas
suas velhas e divagadas visões — de nuvem, chamas, ruídos,
redondos, rodas, geringonça e entes. Com a primeira luz do sol, o
moço se fora, tidas asas.
Todos singularmente se deploraram, para
nunca, mal em pensado. Duvidavam dos ares e montes; da solidez da
terra. Duarte Dias, de dó, veio a falecer; mas a filha, a moça
Viviana, conservou sua alegria. José Kakende conversou muito com o
cego. Hilário Cordeiro, e outros, diziam experimentar uma saudade e
meia-morte, só de imaginarem nele. Ele cintilava ausente, aconteceu.
Pois. E mais nada.
Guimarães Rosa, in Primeiras estórias
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