segunda-feira, 17 de maio de 2021

O picolé

 


Corria a notícia de que no Bar Danúbio, pelos poderes de uma máquina vinda da capital, a água mole estava sendo transformada em coisa dura. Dura e fria, que podia ser chupada, na ponta de um pauzinho, nos mais variados sabores e cores, tal como se chupa bala ou rapadura. O picolé, como era chamado, tornou-se assunto obrigatório de todas as rodas de homens e de comadres, e a sua descrição era levada pela boca de cavaleiros e andarilhos até os lugares mais distantes da serra, das vargens e das beiradas de rio. Seus relatos eram ouvidos com assombro pelos jovens, que gostavam de novidades; e com desconfiança pelos velhos, que imaginavam que aquilo não passava de uma troça e diziam que a água, por determinação de Deus Todo-Poderoso, estava destinada a ser mole para sempre. Se sucedido semelhante fosse verdade, só se fosse por obra do Coisa-Ruim, ou se o fim do mundo estivesse chegando, com a revirada geral das coisas. O próximo passo, argumentavam, seria a pedra virar água, e isto seria o dilúvio. Os portadores da novidade não se davam por vencidos, e exibiam, num gesto de triunfo, os pauzinhos que traziam guardados na algibeira.
Pois aqui está a prova, pra ninguém duvidar. Este é o pauzinho do picolé, é nele que se segura. Tem de muitas cores, vermelho, amarelo, branco; com gosto de groselha, abacaxi e coco...”
O Bar Danúbio, que de costume só atraía uns poucos que ali iam para beber pinga e para conversa fiada, de repente ficou que nem gruta onde aparece a Virgem. Vinha gente de todos os lugares, em romaria, para ver e chupar “o milagre”. Até o vigário da paróquia ficou agradecido, porque a igreja ficou pequena para a quantidade de gente que vinha da roça para a santa missa, não por repentina devoção, mas porque depois da missa era a hora do picolé que se fabricava no Bar Danúbio.
Meu pai, digno herdeiro do espírito moderno da dona Sophia, numa de suas viagens à capital da república, Rio de Janeiro, terno de linho branco e chapéu panamá, calor de 40 graus, o suor escorrendo pelo rosto, assentou-se numa sorveteria na avenida Rio Branco, para chupar um picolé. Deu-se conta, de um estalo, que aquela delícia ainda não se encontrava em sua terra. Não pensou duas vezes. Saiu dali direto para a fábrica de máquinas de picolé e fechou negócio. E logo a cidadezinha ficou em polvorosa com a chegada da novidade. Quem não saía, saiu. Quem não sorria, sorriu...
Enganam-se aqueles que pensam que o Diano fizesse essas coisas por raciocínios comerciais. De jeito nenhum. A ideia de ganhar dinheiro não lhe passou nem uma vez pela cabeça enquanto negociava a máquina, no Rio de Janeiro. Ele não nascera para ficar rico. Enriquecera por acidente. A única coisa que queria era ver a alegria dos outros. No fundo, era uma criança que queria ser amada e, para isto, seria capaz de dar qualquer festa... Claro que a riqueza ajudava. E agora, vendo aquele mundaréu de gente que se comprimia diante da máquina de picolé, ele se sentia como um deus. Pois não será isto mesmo? Que Deus é uma criança que quer dar uma grande festa? Se houvesse eleição para prefeito, é certo que ele seria eleito. Mas nunca quis. Pra que ser prefeito, se do jeito como estava podia distribuir felicidade?
O vendedor não parava de distribuir picolés para os fregueses sorridentes. Todo mundo chupava picolé e ria. Menos um, que chupava picolé de cara triste. O Diano não aguentou. Não podia ver ninguém infeliz.
Não está gostando?”, perguntou.
Tô!”, respondeu o roceiro de embornal pendurado no ombro.
Então, por que a cara triste?”
Tô pensano na muié e nas criança. Ficaro em casa. Num pudero vi. Num vão chupá picolé. Teim dó deis...”
O Diano se comoveu com aquele pai e pensou que era hora de fazer mais gente feliz.
O senhor mora longe?”
Duas légua, na direção da serra...”
Eu vou dar um jeito...”
O Diano, que não acreditava que coisa alguma fosse impossível, tomou as providências. Procurou uma caixinha de madeira, mandou buscar serragem na serraria, embrulhou em papel-manteiga uma dúzia de picolés de todas as cores, acondicionou tudo, fechou, amarrou e entregou o pacote para o roceiro espantado.
Está aqui. Ajeita isto no embornal...”
Quanto é que é?”
Não é nada não...”
Então, Deus lhe pague...”
E enquanto o roceiro descia a rua, montado em sua égua velha, o Diano sorria imaginando a festa, a mulher e a criançada chupando picolé.
Marialva, Firmino, Toninho, Aninha...”
Fazia mais de duas horas que ele andava, apressando a cavalgadura, sol a pino, imaginando a alegria da família chupando picolé.
A casa nem bem aparecera e já o homem anunciava:
Óia o que tô trazeno. Picolé pra todo mundo!”
Foi um alvoroço. A criançada correu. A mulher ficou espiando. Ele desmontou de um salto e notou que o embornal estava molhado, melado. Mas nem ligou. De que vale um embornal molhado quando se tem doze picolés dentro de uma caixa, coloridos e frios, à espera?
Pegou o canivete de cortar fumo, cortou o barbante, desembrulhou a caixa, abriu a tampa...

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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