Nesse momento, sob um empurrão mais
forte, a porta do cercado se abriu e o porco precipitou-se pelo
jardinzinho grunhindo.
— Sente dores, pobre animal... —
disse Zorba com pena.
— É claro que tem dores! — gritou o
velho cretense, rindo-se. — se fizerem a você o que fizeram a ele,
não sentiria dor também?
Zorba bateu na madeira.
— Isola, velho danado! — murmurou ele
apavorado.
O porco ia e vinha diante de nós,
olhando-nos furioso.
— Por minha fé, parece que ele sabe
que estamos comendo pedaços dele! — disse ainda o tio Anagnosti, a
quem o vinho havia inspirado.
Mas nós, tranquilamente, satisfeitos,
comíamos como canibais, bebendo o vinho vermelho, e olhávamos entre
as folhas prateadas da oliveira, o mar todo cor-de-rosa ao sol do
poente.
Quando, caída à noite, deixamos a casa
do velho notável da aldeia, Zorba, inspirado também, estava com
vontade de falar.
— Que falávamos anteontem, patrão? —
disse-me. — você queria esclarecer o povo, abrir-lhe os olhos!
Pois bem, experimente abrir os olhos do tio Anagnosti! Você viu como
a mulher dele ficava ao lado, esperando ordens, como um cachorro que
quer agradar? E vá lhe dizer que é uma crueldade ficar lá comendo
pedaços de porco, enquanto o porco está vivo diante de você,
gemendo; ou que a mulher tem os mesmos direitos que o homem. O que
vai fazer o pobre do tio Anagnosti das suas explicações? Você só
vai lhe arranjar problemas. E o que ganhará amar Anagnosti? Vão
começar as cenas, a galinha vai querer ser o galo do terreiro, não
vai haver senão brigas... Deixe as pessoas tranquilas, patrão. Não
lhes abra os olhos. Se você o fizer, que vão elas ver? A miséria
em que vivem! Deixe-os continuar sonhando!
Calou-se um instante e coçou a cabeça.
Estava pensando.
— A menos — disse ele. — a menos
que...
— A menos que o que? Diga.
— A menos que, quando eles abrirem os
olhos, você possa lhes mostrar um mundo melhor do que as trevas em
que vivem. Você pode? Eu não sabia. Sabia o que iria desmoronar,
mas não o que se poderia construir sobre as ruínas. Isso ninguém
pode saber com certeza, pensava eu. O velho mundo é palpável,
sólido, nós o vivemos e lutamos com ele a cada momento, ele existe.
O mundo do futuro ainda não nasceu, é inatingível, fluido, feito
da luz em que são tecidos os sonhos, é uma nuvem batida pelos
ventos violentos — o amor, o ódio, a imaginação, o acaso,
Deus...o maior profeta não pode dar aos homens senão uma palavra de
ordem; quanto mais esta palavra de ordem for imprecisa, maior será o
profeta.
Zorba me olhava com um sorriso.
Zanguei-me.
— Posso — disse eu.
— Pode? Então, mostre-me.
— Não posso. Você não o
compreenderia.
— Qual nada! É que você não pode me
mostrar mundo algum! — disse Zorba balançando a cabeça. Não sou
nenhum tolo, patrão. Se alguém disse isso a você, esse alguém lhe
enganou. Eu sou tão ignorante quanto o tio Anagnosti, mas não sou
tão burro! Então, se eu não posso compreender, como quer você que
o compreendam aquele velhinho e a mula da mulher dele? E todos os
Anagnosti desse mundo? São então novas trevas que eles vão ver? Se
forem, deixe-os com as trevas antigas — eles já estão habituados.
Aguentaram até aqui, e bem, você não acha? Vivem, e vive bem;
fazem filhos e mesmo netos; Deus os faz surdos, cegos e eles dizem:
“Que o Senhor seja louvado!” Sentem-se bem na miséria. Deixe-os
e cale-se.
Calei-me. Passávamos em frente ao jardim
da viúva. Zorba parou um instante, suspirou, mas não disse nada.
Devia estar chovendo em qualquer lugar. Um cheiro de terra, cheio de
frescura, perfumava o ar. As primeiras estrelas apareceram. A lua
recente brilhava, terna, amarelo-verde, e o céu transbordava de
doçura.
Esse homem, pensei, nunca foi à escola e
seu cérebro não foi desarrumado. Viu de tudo, seu espírito
abriu-se e seu coração alargou-se, sem perder a audácia primitiva.
Todos os problemas complicados, insolúveis para nós, ele os resolve
com um golpe de espada, como seu compatriota, Alexandre o Grande. É
difícil que ele tombe sobre um lado, pois se apoia inteiramente na
terra, dos pés a cabeça. Os selvagens da África adoram a serpente
porque todo o seu corpo toca na terra e conhece, assim, os segredos
do mundo. Ela os conhece com seu ventre, com sua cauda, com sua
cabeça. Ela a toca, mistura-se, faz-se uma só, como a mãe terra. O
mesmo ocorre com Zorba. Nós, as pessoas instruídas, não somos
senão passarinhos bobocas do ar.
As estrelas se multiplicavam, altivas,
desdenhosas, duras, sem nenhuma piedade pelos homens.
Não conversávamos mais. Olhávamos o
céu com terror, víamos a cada instante novas estrelas se acenderem,
enquanto ao oriente o incêndio se alastrava.
Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego
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