Um menino tem sua cabeça a prêmio pelas
ruas de Porto Alegre. Chamado ladrão de cavalos. Como nos faroestes.
Não importa que ele pertença ao estado brasileiro com melhor
qualidade de vida. A realidade do menino não é a da porta da
frente, mas a das cocheiras. O mundo do menino tem necessidades
básicas e nenhuma sutileza. Essa é a tragédia do pequeno
procurado.
Ele tem dez anos, tamanho de oito, no
máximo. Uma inteligência descrita como prodigiosa. E uma obsessão
que lhe deu individualidade entre a massa de crianças desvalidas,
condenadas a se anestesiar de loló pelas ruas: o menino é louco por
cavalos. Não apenas os puros-sangues do Jockey. Qualquer pangaré de
quatro patas faz seus olhos arregalarem-se. O que empresta cor à sua
vida virou uma sentença de morte.
Cinquenta reais é a cotação da cabeça
do menino. O valor é baixo porque quem o quer morto tem pouco mais
do que ele. Pouco, não. Para o menino, muito. Tem um cavalo velho.
Daqueles nascidos para sofrer, em que as costelas causam dor furando
o couro. O crime do menino foi montar no cavalo do carroceiro e
galopar com ele pelas avenidas da cidade. Por algum tempo, a
imaginação do menino transformou aquele matungo triste no corcel
dos farrapos de 20 de Setembro, as sórdidas ruas da região
metropolitana no pampa dos mitos. Por algum tempo, menino e cavalo
foram felizes.
Os cascos da realidade esmagaram os
sonhos do menino. O cavalo, desacostumado a galopar sem as viseiras
de seu jugo, perdeu-se do cavaleiro. O menino voltou para a periferia
desmontado, tendo como lembrança da aventura apenas um traseiro em
feridas. O carroceiro perdeu o instrumento de trabalho, o único
ganha-pão da filharada. Enfureceu-se. Botou preço e espalhou pela
capital. Como essa não foi a primeira cavalgada do menino, outras
vítimas se uniram ao carroceiro. Desde o início do ano o menino
está jurado de morte a um preço menor que o de um cavalo.
A paixão do menino irrompeu aos dois
anos e meio, quando o pai lhe presenteou com uma égua sem raça de
pelos colorados. Uma égua criança, que o menino batizou de
Sabonete. Que se tornou a companheira do menino, quase toda a sua
vida. Quando o menino tinha cinco anos, e a égua dois, ele estava
sozinho em casa com a irmã menor e acendeu uma vela para dissipar a
escuridão que lhe metia medo. A vela lhe escapou das mãos, o
barraco incendiou-se. Não sobrou nada, exceto o menino, que o pai
arrancou do meio das chamas. A égua Sabonete foi vendida para que a
família comprasse um naco de sobrevivência.
O menino descobriu que sem seu cavalo era
meio porque com ele incinerou-se a infância. Encarou pela primeira
vez a cidade no encalço da única fantasia capaz de devolver-lhe a
integridade de um corpo. Quase encontrou a morte debaixo das rodas de
um carro. Ficou um mês e dois dias em coma no hospital. Teve de
reaprender a andar e a falar. Quando falou, a primeira coisa que
disse é que compraria uma casa nova para a família. Quando
caminhou, partiu em busca de sua metade.
Pelo caminho foi saltando sobre o lombo
dos animais que encontrava, sem tempo para explicar que não era
ladrão. Foi interceptado quando galopava rumo a um rodeio. Fraturou
o fêmur ao despencar de um cavalo alto e brabo demais para ele. O
que não deteve o menino. Quando a mãe chaveou-o dentro de casa,
arrancou as tábuas do assoalho. Fugiu de muletas em busca de seu
Pégasus.
O diagnóstico médico para a ânsia do
menino – uma sanha que jamais permitiu-lhe ficar sentado nos bancos
escolares olhando ivo ver a uva – foi “hiperatividade e déficit
de atenção”. A família não tinha dinheiro para comprar o
remédio que lhe garantiria “uma vida normal”. O Conselho
Tutelar, às voltas com meninos abandonados, drogados e violados, não
sabia o que fazer com um menino que tinha a mesma obsessão de
Alexandre, o Grande.
Ninguém percebeu que recuperar o cavalo
era a esperança do menino de voltar no tempo, um segundo antes de
atear fogo à vela que em vez de luz o sepultou em trevas. Ninguém
percebeu que só a ilusão mantinha o menino a salvo da loucura. Que
o cavalo era a lucidez – e não a insanidade. Depois de entrar e
sair de instituições, o menino foi confinado em fevereiro na ala
infantil do manicômio. De onde fugiu dois domingos atrás.
Em busca de seu cavalo, ele submergiu nos
campos de concreto da cidade. Dormindo pelos viadutos, pelas
cocheiras. Encilhado em sua utopia. Embriagado de fantasias, não de
loló. Na quarta-feira, implorando que o deixassem montar, o pequeno
centauro explicou o sopro que anima seu corpo de menino:
– Eu vejo um cavalo, e o meu coração
começa a bater desesperado. Não gosto nem de bola nem de bicicleta.
Só de cavalos. Quando eu durmo, continuo sonhando com cavalos. Sinto
isso.
E se foi. Um cavaleiro solitário aos dez
anos de idade, jurado de morte, agarrado às crinas da única
fantasia capaz de salvá-lo da loucura de uma infância em cinzas.
Eliane Brum, in A vida que ninguém vê
Nenhum comentário:
Postar um comentário