quinta-feira, 27 de maio de 2021

O encantador de cavalos

 


Um menino tem sua cabeça a prêmio pelas ruas de Porto Alegre. Chamado ladrão de cavalos. Como nos faroestes. Não importa que ele pertença ao estado brasileiro com melhor qualidade de vida. A realidade do menino não é a da porta da frente, mas a das cocheiras. O mundo do menino tem necessidades básicas e nenhuma sutileza. Essa é a tragédia do pequeno procurado.
Ele tem dez anos, tamanho de oito, no máximo. Uma inteligência descrita como prodigiosa. E uma obsessão que lhe deu individualidade entre a massa de crianças desvalidas, condenadas a se anestesiar de loló pelas ruas: o menino é louco por cavalos. Não apenas os puros-sangues do Jockey. Qualquer pangaré de quatro patas faz seus olhos arregalarem-se. O que empresta cor à sua vida virou uma sentença de morte.
Cinquenta reais é a cotação da cabeça do menino. O valor é baixo porque quem o quer morto tem pouco mais do que ele. Pouco, não. Para o menino, muito. Tem um cavalo velho. Daqueles nascidos para sofrer, em que as costelas causam dor furando o couro. O crime do menino foi montar no cavalo do carroceiro e galopar com ele pelas avenidas da cidade. Por algum tempo, a imaginação do menino transformou aquele matungo triste no corcel dos farrapos de 20 de Setembro, as sórdidas ruas da região metropolitana no pampa dos mitos. Por algum tempo, menino e cavalo foram felizes.
Os cascos da realidade esmagaram os sonhos do menino. O cavalo, desacostumado a galopar sem as viseiras de seu jugo, perdeu-se do cavaleiro. O menino voltou para a periferia desmontado, tendo como lembrança da aventura apenas um traseiro em feridas. O carroceiro perdeu o instrumento de trabalho, o único ganha-pão da filharada. Enfureceu-se. Botou preço e espalhou pela capital. Como essa não foi a primeira cavalgada do menino, outras vítimas se uniram ao carroceiro. Desde o início do ano o menino está jurado de morte a um preço menor que o de um cavalo.
A paixão do menino irrompeu aos dois anos e meio, quando o pai lhe presenteou com uma égua sem raça de pelos colorados. Uma égua criança, que o menino batizou de Sabonete. Que se tornou a companheira do menino, quase toda a sua vida. Quando o menino tinha cinco anos, e a égua dois, ele estava sozinho em casa com a irmã menor e acendeu uma vela para dissipar a escuridão que lhe metia medo. A vela lhe escapou das mãos, o barraco incendiou-se. Não sobrou nada, exceto o menino, que o pai arrancou do meio das chamas. A égua Sabonete foi vendida para que a família comprasse um naco de sobrevivência.
O menino descobriu que sem seu cavalo era meio porque com ele incinerou-se a infância. Encarou pela primeira vez a cidade no encalço da única fantasia capaz de devolver-lhe a integridade de um corpo. Quase encontrou a morte debaixo das rodas de um carro. Ficou um mês e dois dias em coma no hospital. Teve de reaprender a andar e a falar. Quando falou, a primeira coisa que disse é que compraria uma casa nova para a família. Quando caminhou, partiu em busca de sua metade.
Pelo caminho foi saltando sobre o lombo dos animais que encontrava, sem tempo para explicar que não era ladrão. Foi interceptado quando galopava rumo a um rodeio. Fraturou o fêmur ao despencar de um cavalo alto e brabo demais para ele. O que não deteve o menino. Quando a mãe chaveou-o dentro de casa, arrancou as tábuas do assoalho. Fugiu de muletas em busca de seu Pégasus.
O diagnóstico médico para a ânsia do menino – uma sanha que jamais permitiu-lhe ficar sentado nos bancos escolares olhando ivo ver a uva – foi “hiperatividade e déficit de atenção”. A família não tinha dinheiro para comprar o remédio que lhe garantiria “uma vida normal”. O Conselho Tutelar, às voltas com meninos abandonados, drogados e violados, não sabia o que fazer com um menino que tinha a mesma obsessão de Alexandre, o Grande.
Ninguém percebeu que recuperar o cavalo era a esperança do menino de voltar no tempo, um segundo antes de atear fogo à vela que em vez de luz o sepultou em trevas. Ninguém percebeu que só a ilusão mantinha o menino a salvo da loucura. Que o cavalo era a lucidez – e não a insanidade. Depois de entrar e sair de instituições, o menino foi confinado em fevereiro na ala infantil do manicômio. De onde fugiu dois domingos atrás.
Em busca de seu cavalo, ele submergiu nos campos de concreto da cidade. Dormindo pelos viadutos, pelas cocheiras. Encilhado em sua utopia. Embriagado de fantasias, não de loló. Na quarta-feira, implorando que o deixassem montar, o pequeno centauro explicou o sopro que anima seu corpo de menino:
Eu vejo um cavalo, e o meu coração começa a bater desesperado. Não gosto nem de bola nem de bicicleta. Só de cavalos. Quando eu durmo, continuo sonhando com cavalos. Sinto isso.
E se foi. Um cavaleiro solitário aos dez anos de idade, jurado de morte, agarrado às crinas da única fantasia capaz de salvá-lo da loucura de uma infância em cinzas.

Eliane Brum, in A vida que ninguém vê

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