E, de repente, tudo acabou. A Bolsa de
Nova York quebrou. Meu pai, exportador de café, perdeu tudo. Não
conseguiu fazer as transformações alquímicas por meio de palavras
a que estava acostumado. Sua magia era fraca para tragédia tão
grande.
Sem casa onde morar, um cunhado lhe
emprestou uma fazenda abandonada. Pau-a-pique e adobe, caiação
branca já suja pelo tempo, janelas de madeira azuis que o abandono
desbotara, rudes largas tábuas no assoalho com buracos apodrecidos,
teto de telha vã, os picumãs pendentes sobre o fogão, sem
banheiro, as necessidades se faziam na ”casinha” durante o dia e
nos urinóis durante a noite, a bica d’água cristalina, os banhos
de bacia, os “lava-pés” ao fim do dia, o cheiro de querosene das
lamparinas à noite, os ratos correndo pelos caibros do telhado, o
fogão de lenha, o cheiro de fumaça, o canto dos galos, a gritaria
dos porcos na matança, os ninhos das galinhas, os entardeceres
tristes, as galinhas esticando o pescoço e piando, avaliando o
tamanho do voo até o poleiro mais alto, o pio das aves noturnas, os
barulhos estranhos na mata escura, ninguém se atrevia a sair, era
noite, podia ser onça, a família espantava o medo passando trancas
nas portas e janelas, e ficava junta ao redor do fogão de lenha
aceso.
“Roça” é um lugar que a esperança
abandonou. Havia os que “iam” à roça. Eram os fazendeiros
proprietários que moravam na cidade e lá apareciam para ver o seu
gado. Para esses havia esperança. Havia também os raros amigos que
visitavam aos domingos. Para eles “roça” era piquenique. Mas
havia os que “pertenciam” à roça, que estavam plantados nela,
companheiros do gado, das matas, dos pastos. Para esses não havia
esperança. Quem era da roça morria nela. “Roça” era limbo de
onde não se podia sair. Meu pai não era da roça. A roça foi o seu
degredo.
Para sobreviver era preciso lutar com a
natureza. A natureza é bonita quando a gente a contempla de longe.
De longe é um cenário bom de se fotografar. Ou quando ela foi
domesticada e transformada em parque ou jardim. Mas a natureza em si,
do jeito como nasceu, bruta, a gente dentro dela, é fera que mata
sem piedade. Um amigo que morou menino na roça me disse: “Hoje
todo mundo fala mal dos pioneiros que cortaram as florestas a
machado. Acusam-nos de assassinos da natureza. Mas não havia outro
jeito. A mata estava ali, cobra verde de boca aberta, à espreita,
sorrateira, se arrastando, se aproximando, pronta a dar o bote. A
mata era inimiga. Era preciso matá-la como se mata cobra. Ou nós ou
ela... Para se construir uma casa e viver em paz era preciso acabar
com a mata. Bom não era o verde. Bom era o ‘terreiro’ bem limpo,
apisoado, varridinho, sem nem um capim crescendo nele, garantia de
que as aranhas, os escorpiões e as cobras ficariam longe”.
Era no terreiro que as crianças
brincavam sem perigo. Quando o Jeca Tatuzinho se curou dos vermes e
do amarelão e ganhou saúde, pegou no machado e pôs-se a cortar
árvores. Assim escreveu Monteiro Lobato, o desenho do Jeca Tatuzinho
cortando árvore, o que indica que até mesmo ele aprovava o que o
Jeca fazia.
Lembro-me do meu pai trabalhando com a
foice, corpo coberto de suor. Era preciso roçar os pastos para o
gado ter o que comer. Batia a exaustão. Exaustão maior para quem
não estava acostumado. Depois ele me contou que, quando a sede
apertava, ele, de propósito, não bebia água. Esperava que a sede
crescesse até ficar insuportável. Aí então ele ia até a mina. A
mina estava escondida numa loca coberta de vegetação. Dentro era a
sombra. A água borbulhava de mansinho, cristalina. A cuia cortada ao
meio estava pendurada num gancho, à sombra. Ele pegava a cuia,
enchia-a de água, olhava para a água agradecido, e bebia. Aí ele
sentia que valia a pena viver. Não é preciso acreditar em Deus para
sentir gratidão. Basta uma cuia d’água...
Tudo o que eu disse sobre a “roça”
como lugar que a esperança abandonou só valia para os grandes. Eu
era uma criança feliz. A infelicidade começa com a comparação. E
eu não tinha com que comparar. Bachelard observou que “a
infância conhece a infelicidade através dos homens” (A poética
do devaneio, p. 9). Ainda não havia
aprendido com os adultos a arte maldita da comparação. Esperança é
coisa de gente grande, que vive no tempo, o passado, o presente, o
futuro. Esperança é uma fantasia do futuro que alegra o presente.
Criança não tem esperança. Não precisa. Se alegra no presente.
Criança está fora do tempo. Mora na eternidade. Na eternidade não
há tempo, não há passado, não há futuro, só o presente. Criança
vive o momento. Eu só vivia o presente. Não tinha ansiedades. Meu
irmão Ismael me contou que um dia a mãe lhe disse: “O que nos
resta para viver são 800 mil-réis de um carro de bois que o seu pai
vendeu...” . Minha mãe e meu irmão estavam ansiosos pelo futuro.
Eu não. Sem o saber vivia a sabedoria evangélica que dizia que é
inútil se preocupar com o amanhã. Jesus sabia que a cura para
nossas doideiras é ficar criança de novo.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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