quinta-feira, 20 de maio de 2021

Franny

Embora o sol brilhasse forte, a manhã de sábado foi mais uma vez de clima de sobretudo, clima não só de casaco, como tinha sido a semana toda e como todo mundo esperou que ficasse para o grande fim de semana — o fim de semana do jogo de Yale. Dos vinte e poucos rapazes que estavam na estação esperando que suas namoradas chegassem no trem das dez e cinquenta e dois, não mais que seis ou sete estavam no frio da plataforma aberta. O resto estava por ali, em grupinhos fumarentos e sem chapéu compostos de duas, três e quatro pessoas, dentro da sala de espera aquecida, conversando em vozes que, quase sem exceção, soavam universitariamente dogmáticas, como se cada rapaz, em sua estridente participação na conversa, estivesse resolvendo de uma vez por todas alguma questão tremendamente controversa, algo em que o mundo exterior e não matriculado vinha metendo os pés pelas mãos, de maneira provocativa ou não, por séculos.
Lane Coutell, com uma capa de chuva Burberry que aparentemente tinha um forro de lã removível, era um dos seis ou sete rapazes lá na plataforma aberta. Ou, na verdade, ele era e não era um deles. Fazia dez minutos ou mais que vinha deliberadamente se mantendo logo além do alcance das vozes dos outros, com as costas contra a estante de folhetos grátis da Ciência Cristã, mãos sem luvas nos bolsos do casaco. Estava usando um cachecol bordô de caxemira que tinha lhe subido pelo pescoço e não dava proteção contra o frio. Abrupta e algo distraidamente, tirou a mão direita do bolso do casaco e começou a ajeitar o cachecol, mas antes de conseguir ajeitar, ele mudou de ideia e meteu a mesma mão no casaco para pegar uma carta do bolso interno do paletó. Começou a ler imediatamente, com a boca não exatamente fechada. A carta estava escrita — datilografada — num papel de recados azul-claro. Tinha a aparência de algo manuseado, envelhecido, como se já tivesse sido tirada do envelope e lida várias vezes: Quinta, acho eu

CARÍSSIMO LANE,
Não tenho ideia se você vai conseguir decifrar isso aqui porque o barulho no dormitório está absolutamente inacreditável hoje de noite e eu mal consigo ouvir os meus próprios pensamentos. Então se eu escrever alguma palavra errado por favor tenha a bondade de desconsiderar. Aliás, eu aceitei o seu conselho e tenho recorrido bastante ao dicionário, então se isso der uma endurecida no meu estilo a culpa é sua. Enfim, acabei de receber a sua carta tão linda e te amo demais, tanto mesmo etc., e mal posso esperar o fim de semana. Pena não conseguir me pegar em Croft House, mas eu na verdade nem me incomodo e posso ficar em qualquer lugar desde que seja quentinho e não tenha bicho e eu te veja de vez em quando, i.e., o tempo todo. Eu ando louca por i.e. Eu absolutamente adorei a sua carta, especialmente a parte sobre Eliot. Acho que estou começando a desprezar todos os poetas fora Safo. Estou lendo Safo feito louca, e nada de comentários vulgares, por favor. Pode até ser que eu faça o meu negócio aqui de fim de semestre sobre ela se decidir mesmo escrever uma monografia e se conseguir fazer o imbecil que me deram de orientador aqui aceitar a ideia. “Morre Adônis gentil, como seguir, ó Citereia? podem todas pungir, podem puir pálios e peças.” Não é maravilhoso? E ela não para de fazer bem isso. Você me ama? Você não disse uma única vez naquela sua carta horrorosa. Eu te odeio quando você fica sendo tão homem e retiscente (ort.?). Não que eu te odeie de verdade mas eu sou constitucionalmente contra homens fortes e calados. Não que você não seja forte, mas você sabe do que eu estou falando. Está ficando tão barulhento aqui que eu mal consigo ouvir os meus próprios pensamentos. Enfim, te amo e quero colocar esta cartinha na entrega especial para você poder receber bem antes se der para encontrar um selo neste hospício. Te amo te amo te amo. E você sabe que eu só dancei duas vezes com você em onze meses? Sem contar aquela vez no Vanguard porque você estava tão bêbado. Eu provavelmente vou estar uma pilha de nervos. Aliás, eu te mato se tiver fila de cumprimentos nesse negócio. Até sábado, minha flor!

Com todo o meu amor,
Franny
XXXXXXXX XXXXXXXX

P.S.: O papai pegou as radiografias no hospital e ficou todo mundo bem aliviado. É um tumor mesmo mas não é malicno. Falei com a mãe ontem de noite por telefone. Aliás, ela te mandou um beijo, então relaxe sobre a coisa de sexta à noite. Acho que eles nem ouviram a gente chegar.
P.P.S.: Eu fico parecendo tão burrinha e tapada quando te escrevo. Por quê? Você tem minha permissão para analisar o fato. Vamos só tentar ter um fim de semana maravilhoso. Assim, vamos não tentar analisar tudo até o osso para variar, se for possível, especialmente eu. Te amo.

FRANCES (sua assinatura)

J. D. Salinger, in Franny & Zooey

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