segunda-feira, 12 de abril de 2021

Vulva, Kant, e uma casa feliz

Jack Hendley pegou a escada rolante para ir nas tribunas. pegou não é bem o termo – apenas subiu por aquela porra.
53º programa de corridas. noite. comprou o folheto no velhinho – 40 cents, gritando na capa – páreo de 2.000 metros, prêmio de 2.500 dólares ao vencedor – um cavalo estava saindo mais barato que carro novo.
Jack saltou da escada rolante e esbarrou na lata de lixo mais próxima. porra, essas noites de porre estavam arrasando com ele. devia ter pedido as vermelhinhas pra Eddie antes de ter ido embora da cidade. mas, de qualquer forma, a semana havia sido ótima, uma semana de 600 dólares, uma grande diferença dos 17 paus semanais que ganhava, em Nova Orleans, em 1940.
mas perdeu a tarde inteira com um cara que foi bater lá na porta. Jack levantou da cama e deixou que entrasse – um ninquinho de gente – e o tal ninquinho passou 2 horas sentado no sofá – a falar sobre a VIDA, só que não entendia absolutamente nada do assunto, o veado apenas falava e nem se preocupava em viver.
o ninquinho, mesmo assim, encontrou jeito de beber a cerveja de Jack, fumar tudo que havia pra fumar e impedir que se ocupasse com o Programa, atrapalhando os preparativos que deveria ter feito antes das corridas.
o próximo cara que me incomodar, palavra de honra, o próximo que me torrar a paciência, aplico-lhe uma em regra, do contrário passam a perna na gente, aos poucos, um após outro, até liquidar por completo, pensou. Não sou nenhum malvado, mas eles são, aí é que está.
resolveu tomar café. lá estavam os mesmos velhos de sempre, paquerando e dizendo gracinhas pras garçonetes do balcão. que bando mais infeliz e solitário de brochas.
Jack acendeu um fumo, se engasgou e jogou o cigarro longe. encontrou lugar nas tribunas, bem na frente, ninguém por perto. com sorte e sem nenhum chato pra encher, talvez conseguisse aprontar as apostas. mas – sempre havia os desocupados, caras sem nada pra fazer a não ser matar o TEMPO – por fora de tudo, sem programa (o programa dos páreos vinha anexo ao folheto); só pensando em bisbilhotar e se intrometer. chegavam com horas de antecedência, apáticos, distraídos, e ficavam simplesmente zanzando por lá.
o café estava ótimo, quente. ar límpido, limpo, frio. nem sinal de neblina. Jack começou a se sentir melhor. tirou a caneta do bolso e se concentrou no primeiro páreo. talvez ainda desse. aquele filho da puta desperdiçando-lhe a tarde inteira com papo furado lá no sofá, aquele filho da puta tinha estragado tudo. ia ficar muito, muito difícil – dispunha de apenas uma hora pra preparar toda a cartela. nos intervalos nem pensar – a aglomeração de gente atrapalhava demais e tinha que se ficar de olho na colocação do placar.
começou a marcar o primeiro páreo. até aí – tudo bem. de repente ouviu. um desocupado. Jack já tinha visto aquele abelhudo olhando lá pro lado do estacionamento, enquanto descia a escada em busca de um canto sossegado. agora farto de brincar “de olhar pros carros” vinha vindo na direção de Jack, detendo-se em cada degrau, um cara já meio velhusco, de sobretudo. de olho morto, sem vibração alguma. rocha. um desocupado de sobretudo.
o sujeito se aproximou devagar. um ser humano, como qualquer outro, pois sim. fraternidade, aqui, ó. Jack ouviu as pisadas. chegava num degrau e estacava. depois descia mais um.
Jack se virou e olhou pro cretino. estava ali parado, em pé, de sobretudo. não havia outra pessoa numa extensão de cem metros, mas o desgraçado tinha que cismar de vir meter o bedelho naquele canto.
guardou a caneta no bolso. aí o sujeito se colocou bem por trás dele, pra espiar o programa por cima do ombro. Jack xingou, fechou o folheto, levantou e foi sentar a 30 metros de distância, perto da outra escada.
abriu o programa e recomeçou o trabalho, pensando ao mesmo tempo na multidão que se reúne nos hipódromos – uma fera imensa, imbecilizada, gananciosa, solitária, malévola, mal-educada, bronca, hostil, egoísta e viciada. o mundo, infelizmente, vivia infestado de bilhões de criaturas que não têm nada pra fazer a não ser matar o tempo e matar a gente.
já estava na metade da marcação do primeiro páreo, sublinhando os prováveis vencedores, quando ouviu de novo. os passos lentos se aproximando. olhou ao redor. inacreditável. o mesmo sujeito!
Jack fechou o folheto e se levantou.
o que é que o senhor tá querendo comigo? – perguntou.
como assim?
que história é essa de vir espiar por cima do meu ombro? isto aqui tem quilômetros de espaço vazio e o senhor sempre acaba parado do meu lado. portanto, que que tá querendo, porra?
nós estamos num país livre, eu...
não estamos, não senhor. é um país onde tudo se compra, se vende e se possui.
o que eu quero dizer é que posso andar onde bem entender.
claro que pode, contanto que não venha sacanear a minha intimidade. o senhor está sendo mal-educado e idiota. como o pessoal costuma dizer, “você tá ENCHENDO”, cara.
paguei ingresso pra entrar. não pode me dar ordens.
tá, o problema é seu. vou mudar outra vez de lugar. estou fazendo tudo pra me controlar. mas se vier pro meu lado pela TERCEIRA VEZ, garanto que lhe viro a mão na cara!
Jack mudou de lugar de novo e viu o sujeito sair à cata de outra vítima. mas não conseguiu tirar o desgraçado da ideia. subiu até o bar e pediu uísque com água. quando voltou, os cavalos já estavam na pista se aquecendo pro primeiro páreo. tentou retomar o programa, mas não conseguiu, de tanta gente que tinha. um cara bêbado, com voz de alto-falante, berrava que não faltava um único sábado nas corridas desde 1945, um debiloide irrecuperável. mas boa-praça. esperem só por uma noite de cerração pra ver se ele não se tranca pra uma bronha na privada. bom, pensou Jack, tô ferrado. basta a gente ser paciente pra terminar crucificado na cruz. aquele filho da puta lá no sofá, a falar em Mahler e Kant e vulva e revolução, e não entendendo absolutamente porra nenhuma daquilo.
teria que desistir do primeiro páreo. 2 minutos pra largada. um minuto. foi empurrando aquela gente toda, o dobro da frequência diurna. largaram. “aí vêm eles!”, gritou o locutor. alguém pisou-lhe os dois pés. por pouco não era perfurado por uma cotovelada, um batedor de carteira se esgueirou pelo lado esquerdo.
malta de cão e gato. começou a torcer por Windale Ladybird. porra, a favorita do apronto. tiro e queda. já estava perdendo a cabeça de saída.
Kant e vulva. cachorros.
Jack foi-se adiantando e terminou bem no fim das tribunas. o carro empurrava os portões de partida e os cavalos já se aprontavam para o início dos 2.000 metros.
ainda nem tinha sentado quando surgiu outro desocupado. em estado de transe. de olho fixo em qualquer coisa lá pelas arquibancadas. o corpo vindo certeiro em sua direção. não havia outra saída. uma colisão. quando os dois se chocaram, Jack ergueu e fincou o cotovelo com força naquela barriga mole. o cara saiu na disparada, gemendo.
quando conseguiu sentar, Windale Ladybird tinha se distanciado com 4 corpos de vantagem na última curva, antes da reta de chegada. Bobby Williams ia tentar ultrapassar os 1.200 metros. mas, pra Jack a montaria não parecia animada. depois de 15 anos de carreiras, era capaz de adivinhar, instintivamente, pelo avanço, se o cavalo corria solto ou preso. Ladybird fazia força – 4 corpos de vantagem, mas devia estar rezando pra sair vencedora.
3 na frente, na reta de chegada. aí Hobby’s Record começou a ganhar terreno. vinha pisando a areia com agilidade e firmeza. Jack morreu. na frente da reta de chegada, com 3 corpos, morreu. a 15 metros da fita, Hobby’s Record tomou a dianteira pelo que parecia ser um corpo e meio de vantagem. boa alternativa de 7-2.
Jack rasgou 4 pules de cinco dólares cada uma. Kant e a vulva. devia ir embora. guardar o resto da bolada. esta é uma daquelas noites.
o 2º páreo, de 1.600 metros, por acaso era simples. não precisava analisar tempo e categoria. o pessoal apostava em Ambro Índigo, por causa de uma colocação por dentro, que facilitava a largada, e por ser Joe O Brien o jóquei. o outro rival, Gold Wave, largaria por fora, no 9o posto, com o pouco conhecido Don Mc Ilmurray. se tudo fosse tão fácil assim, há anos estaria morando em Beverly Hills. mas contudo, mesmo com o péssimo resultado do primeiro páreo, e todo aquele Kant e a vulva, Jack arriscou 5 pules no vencedor.
aí Good Candy virou o favorito na última hora da apuração total das apostas e todo o pessoal veio correndo pra apostar nele. Candy tinha caído de um apronto de 20 pra 9. agora estava em 8. o pessoal ficou doido. Jack achou que aquilo não estava cheirando bem e foi tratando de dar o fora. de repente um MASTODONTE veio correndo – o filho da puta devia ter quase 3 metros de altura – de onde podia ter saído? Jack nunca tinha visto aquele cara mais gordo.
o MASTODONTE queria CANDY e só enxergava o guichê na sua frente, e o carro estava levando os portões de partida para a faixa da largada. o sujeito era moço, alto, corpulento, parvo, estourando as tábuas na direção dele. Jack procurou se abaixar. tarde demais. o mastodonte deu-lhe uma cotovelada na fronte que o jogou a 5 metros de distância. clarões vermelhos, azuis, amarelos e roxos explodiram no ar.
ei, seu filho da puta! – gritou Jack.
mas o mastodonte, debruçado no guichê, comprava pules perdedoras. Jack voltou pro seu lugar.
Gold Wave apareceu na curva com 3 corpos de vantagem na dianteira da reta. e avançando com a maior facilidade. ia ser uma barbada, de 4-1. mas Jack só tinha apostado 5, o que lhe dava um lucro de 6.50 dólares. ora, era sempre melhor que varrer bosta.
perdeu o 3º, o 4º e o 5º páreos, fisgou Lady Be Fast, 6-1 no 6º, apostou em Beautiful Handover, 8-5 no 7º, deu certo e ficou reduzido a apenas 30 pratas, por puro instinto, depois pôs 20 em Propensity no 8º, 3-1, e não é que Propensity cai logo de saída? acabou-se o que era doce.
mais uísque com água. essa história de não ter tempo pra analisar as corridas dava no mesmo que atarraxar bola de praia em privada escura. vai pra casa – morrer agora estava um pouco mais fácil com uma pausa pra refrescar, de vez em quando, em Acapulco.
Jack olhou pras garotas mostrando tudo lá, nas cadeiras junto à parede. esse negócio de tribuna era bonito e limpo, bom de olhar. mas estava ali pra tirar a grana dos ganhadores. permitiu-se paquerar as pernas das garotas por alguns instantes. depois virou pro placar. sentiu pressão de uma perna encostada. um roçar de seio, o mais suave dos perfumes.
escute, moço, com licença.
pois não. encostou-se ainda mais. bastava pronunciar as palavras mágicas e podia dar uma trepada de 50 dólares. só que não conhecia nenhuma que valesse isso.
sim? – perguntou.
qual é o cavalo nº 3?
May Western.
acha que pode ganhar?
não contra esses aí. talvez da próxima vez, num lugar um pouco melhor.
só quero cavalo que dê grana. qual você acha que vai dar?
você – respondeu Jack, dando o fora dali.
vulva, Kant e uma casa feliz.
ainda estavam apostando em May Western e Brisk Risk caía de cotação.
CORRIDA DE 1.600 METROS, POTRANCAS E ÉGUAS, NÃO VENCEDORAS DE 10 mil dólares EM 1968. cavalo ganha mais que a maioria dos homens, só que não pode gastar.
passou uma maca móvel transportando uma velha de cabelo grisalho debaixo do lençol.
o placar girou. Brisk Risk caiu outra vez. May Western aumentou um ponto.
ei, moço! – uma voz de homem atrás dele. Jack estava concentrado no placar.
sim?
me dá 25 cents aí!
Jack nem se virou. tirou a moeda do bolso, deixou na palma da mão e ofereceu por cima do ombro. sentiu a pressão da ponta dos dedos pegando o dinheiro.
nem chegou a ver o cara. o placar marcou zero.
aí vêm eles!
ah, porra.
chegou no guichê de dez dólares, apostou uma pule em PIXIE DEW, 20-1, e duas em CECILIA, 7-2. nem sabia o que estava fazendo. existe uma determinada maneira de fazer as coisas, de enfrentar touros na arena, fazer amor, fritar ovos, tomar água, beber vinho, que quando a gente não faz direito se engasga ou então acaba morrendo.
Cecília tomou a dianteira e saiu perseguida pelos demais na reta oposta. Jack reparou bem na pernada do cavalo. havia chance. ainda não estava dando tudo o que tinha e o jóquei segurava a rédea com leveza. bem razoável, por enquanto. mas o que vinha logo em seguida parecia melhor. Jack conferiu no programa. Kimpam, no 12 na linha de largada, partiu com 25, o pessoal nem quis saber dele. o cavalo levava Joe O’brien na charrete, mas Joe tinha perdido com a mesma montaria, 9-1, dois páreos antes. cego feito morcego. Lighthill saiu em carreira desabalada contra Cecília, que, exposta, diminuiu de velocidade, Lighthill tinha que arriscar ou perder. havia chance.
vinha com 4 corpos de vantagem na dianteira da reta final. O’Brien deixou Lighthill cobrir a diferença. aí se curvou e soltou Kimpam por completo. porra, não, não a 25-1, pensou Jack. não deixa essa égua passar na frente, Lighthill. estamos com 4 de vantagem. vamos de uma vez. 20 pratas a 7-2 podem dar 98. e a noite estará salva.
olhou Cecília. as patas não levantavam até o joelho. vulva, Kant e Kimpam. Cecília diminuiu o ritmo, quase parando na metade da reta. O’Brien passou voando com seus 25-1, sacolejando na charrete, afrouxando a rédea, conversando com o cavalo.
aí Pixie Dew veio correndo por fora, Ackerman dando rédea solta aos 20-1 e recorrendo ao chicote – 20 vezes dez, 200 paus, fora os trocados. Ackerman reduziu a diferença pra um corpo em relação a O’Brien, e foi assim que chegaram – O’Brien mantendo aquele espaço aberto, incentivando o cavalo, passando feito barco à vela sorrindo de leve, como é seu costume, e acabou. Kimpam, égua de pelo castanho, no 4, filha de Irlandês e Meadow Wick. Irlandês? e O’Brien? porra, era dose. as desvairadas senhoras de grampo de chapéu dos manicômios do inferno tinham, finalmente, conseguido uma vítima.
os guichês que pagavam pule de dois dólares ficaram apinhados de velhotas sustentadas pela previdência social, com meia garrafa de gim na bolsa.
Jack desceu pela escada. as rolantes estavam abarrotadas de gente. passou a carteira pro lado esquerdo do paletó pra despistar os punguistas. metiam a mão no bolso traseiro da calça 5 ou 6 vezes por noite, mas a única coisa que lhe tinham conseguido roubar era um pente desdentado e um lenço velho.
entrou no carro, saiu entre a multidão, conseguiu não amassar o para-choque, a cerração já estava bem baixa. mas não encontrou problema pra rumar pra zona norte, só que perto de casa, apesar da neblina, viu uma coisa gostosa, moça, vestido curto, pedindo carona, ah, minha nossa, freou, a perna era possante, mas quando conseguiu reduzir a marcha já estava a 50 metros além dela, com outros carros vindo logo atrás. ah, paciência. que fosse currada por um idiota qualquer. ele é que não ia procurar retorno nenhum.
verificou se havia luz em casa. não tinha ninguém. ótimo. guardou o carro, sentou na sala e abriu o programa no meio com o polegar. tirou a tampa da garrafa de uísque, de uma lata de cerveja também e mergulhou no trabalho. não fazia 5 minutos que estava ali quando o telefone começou a tocar. ergueu os olhos, fez com o indicador o gesto clássico, mandando o aparelho se foder e se inclinou de novo em cima do programa. velho profissional não brinca em serviço.
dali a duas horas não havia nem rastro das 6 latas de cerveja e do meio litro de uísque – já estava deitado, dormindo, na cama, com a cartela do dia seguinte completamente preenchida e um sorrisinho de segurança no rosto. há dezenas de maneiras de se enlouquecer.

Charles Bukowski, in A mulher mais linda da cidade

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