sábado, 10 de abril de 2021

Uma tarde feliz como embandeirada

 

Gravura de Grauben do Monte Lima


...Que felicidade pura e suave. Tudo nesta tarde estava ameno e leve como a brisa para preparar minha ida à casa de Grauben. Enfeitei-me um pouco: queria estar bonita, imitando de longe a natureza desta tarde. E lá fui eu com dois livros na mão para dedicar à delicadíssima pintora. Depois entendi que deveria ter levado papoulas, as mais lindas e variadas, e se pudesse comprava uma borboleta viva para cheirar as flores.
E Grauben? Ela é a esperança dos que temem a velhice. E o segredo é descobrir em si mesma a possibilidade de uma ação criativa. Grauben tem 78 anos. Ela é enxutinha, e tão bonitinha, e mexe-se com gestos hábeis e ágeis, anda com mais leveza do que muita jovem. E seu rosto? É lindo: uma pele sem mancha, a saúde se refletindo naqueles olhos alegres, o rosto cor-de-rosa. Se esta é sua cor, ótimo. Se era um pouquinho de ruge, melhor ainda. Eu que, mesmo sem motivo, sou um pouco melancólica, vi que estava rindo e sorrindo e era a mais límpida homenagem à pintora. Escolhi um quadro que tem tudo da Grauben: um grande pássaro azul entre águia e pavão, uma enorme borboleta, uma flor toda aberta, plantas e todos os pontilhados que ela usa como fundo do quadro e que dão a impressão de uma moita de alegria. Nós duas queríamos nos conhecer mutuamente. Lamento apenas ter provavelmente ar de boba, sorrindo à toa. Sua filha Eunice Catunda é concertista. Passamos para o seu apartamento ao lado e ela tocou para mim. Toda eu era um coração batendo de emoção. Os sons que saíam de seus dedos eram tão puros e sonoros e límpidos. Eu estava séria de prazer. Eunice já tocou como solista no Carnegie Hall e em setembro irá de novo se apresentar na mesma sala de concertos onde só os grandes entram. “Eu me divirto com meus filhos: são tão inteligentes e capazes. Eunice, por exemplo, além dos concertos por tantos lugares do mundo, tem jeito para tudo: se faz pintura, faz ótima, se cozinha a comida é perfeita, ela sabe fazer tudo.” Grauben não perde nada deste mundo. Ela é pra frente. Sua casa de súbito para mim parece um bosque encantado, úmido, denso, rico com todas as invisíveis folhas verdes e transparentes. E eis-me agora com uma Grauben em casa. Quem não tem jamais saberá o que perde. E o preço dos quadros é perfeitamente acessível a um enorme número de pessoas. Grauben me deu uma fotografia sua segurando exatamente o meu quadro. E atrás da fotografia – desculpem, mas a alegria me faz perder por um instante a modéstia objetiva com que vivo – atrás da fotografia escreveu: “À grande Clarice, obrigada por conhecê-la, a desde já grande amiga.” Assinado o nome mais deleitoso entre nossas pintoras: Grauben.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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