Em poucos meses iniciaram a construção
da escola. Não soubemos como, nem quais interesses particulares
envolveram a negociação entre o prefeito e a família Peixoto, mas
a obra foi autorizada, e os próprios moradores passaram a construir
o pequeno edifício de três salas em regime de mutirão, aos
domingos, dia em que poderiam deixar de cuidar da roça – mas não
poderiam deixar de dar comida e água aos animais. O local destinado
à construção era o cruzamento dos caminhos para os rios Santo
Antônio e Utinga.
Foi uma obra providencial, porque naquele
mesmo ano se iniciou um período longo de estiagem, de modo que o
pouco dinheiro destinado aos que construíam a escola, mesmo com os
meses de atraso e o pequeno montante de recursos destinado ao
pagamento da mão de obra, garantiu a sobrevivência de muitas
famílias. Foi um tempo difícil. Meu pai se referia àquele período
como a pior seca desde 1932. Aquele também foi o último ano em que
vi uma plantação extensa de arroz naquelas terras. O arroz,
dependente de água, foi o primeiro a secar com a estiagem. Depois
secaram a cana, as vagens de feijão, os umbuzeiros, os pés de
tomates, quiabo e abóbora. Havia uma reserva de grãos guardada em
casa e no galpão da fazenda. Com a seca, veio o medo de que nos
mandassem embora por falta de trabalho. Depois veio o medo mais
imediato da fome. Os grãos passaram a rarear, o feijão acabou antes
do arroz, e do arroz restava muito pouco. Havia um razoável
suprimento de farinha de mandioca que algumas famílias fabricavam e
trocavam por outros alimentos. Agora, mais que antes, seguíamos
quase todos os dias para os rios para pescar, e a cada pescaria só
conseguíamos capturar peixes cada vez menores, que só serviam para
dar um gosto ao angu de farinha. Peixes grandes chegavam das
cabeceiras com as enxurradas, e como não caía nem um chuvisco,
restavam apenas os menos nobres e menos desenvolvidos, como o cascudo
e a piaba.
Foi possível temperar os peixes enquanto
havia umbu, que, junto com o sal, garantiu algum sabor à carne.
Quando a farinha passou a rarear, meu pai recordou a receita do beiju
de jatobá que Donana fazia. Havia vagens em abundância. Era uma
árvore que resistia bem à falta d’água, frondosa, imponente, uma
reserva de alimento de segunda linha, ignorada quando havia tudo o
mais. Assim, comemos beiju de jatobá por meses, até enjoar.
Disputamos a palma com o gado da fazenda.
Havia uma parcela de terra destinada ao seu plantio. O cacto que se
destinava à nossa alimentação estava em nossos quintais. Quem não
foi previdente em ter sua própria plantação de palma, que acabaria
com o passar dos meses, tinha que contar com a solidariedade de um
vizinho, para garantir o cortado na mesa, guisado no azeite de dendê.
Também havia as caças. Mas, no alto da estiagem, era mais fácil
encontrar as carcaças dos animais mortos pela falta de alimento do
que encontrar algum para ser abatido. Os veados estavam escassos,
seja pela caça ou pela falta de água nas áreas de sequeiro. Com
muito esforço, os víamos bebendo água nos marimbus, mas estavam
cada vez em menor número. A paca, muito apreciada, não dava as
caras na mata. Nem capivara, nem cutia. Era possível capturar
algumas aves como o jacu, inhambu e juriti, mas essas aves quase não
tinham carne, então nos contentávamos com o gostinho dos ossos.
Houve até o caso de uma família em Pau-de-Colher, contou tia
Hermelina, que morreu depois de comer uma sariema no desespero da
fome; a ave havia comido uma cascavel e sua carne estava impregnada
do veneno peçonhento.
Com mais frequência conseguíamos um
teiú, fácil de encontrar porque comia as carcaças dos animais
mortos, do gado minguando sem pasto, das caças abatidas pela
estiagem. Então, bastava ficar à espreita onde houvesse bicho morto
para acossá-lo. E, se não os comêssemos, certamente eles comeriam
nossa carne magra.
As crianças eram as que mais padeciam:
paravam de crescer, ficavam frágeis e por qualquer coisa caíam
doentes. Perdi a conta de quantas não resistiram à má alimentação
e seguiram sem vida, em cortejo, para o cemitério da Viração. A
morte apeava nas casas dos nossos vizinhos e, mesmo com todo esforço
de Zeca Chapéu Grande para restituir a saúde e o vigor às crianças
doentes, muitas não resistiam. As velas que meu pai acendia para
cada criança pareciam não querer permanecer acesas: mesmo sem
ventos ou golpes de ar, se apagavam. Não havia remédio, dizia sem
se conformar com a sua incapacidade de reverter a situação. Que
procurassem outro curador ou se conformassem com os desígnios de
Deus.
Continuávamos a colher buriti e dendê
para levar para a feira da cidade às segundas-feiras. Minha mãe, as
comadres, eu, Belonísia e Domingas catávamos os frutos nas várzeas
dos marimbus. Meu pai, Zezé e os outros moradores colhiam os cachos
de dendê nos pés para prepararmos o azeite. Os buritizeiros eram
altos e seus frutos não eram de serventia se colhidos nos cachos.
Era preciso esperar que caíssem para que pudessem ser consumidos.
Armazenávamos os frutos em grandes tonéis de água para amolecer a
casca. Retirávamos com as mãos, de forma suave, para aproveitar a
polpa, e levávamos aquelas massas em sacos de linhagem nas cabeças,
pela estrada, para vender para as senhoras que faziam doce de buriti
e sucos para vender.
Pela estrada, debaixo do sol forte, a
massa do buriti aquecido escorria pelas tramas da linhagem e nos
besuntava com sua polpa gordurosa e alaranjada. Nossa pele negra
ficava quase acobreada. Chegávamos à cidade envergonhadas da
sujeira em nosso cabelo e roupas. Levávamos tecidos enrolados
embaixo da cabeça para ajudar no equilíbrio do peso e amenizar um
pouco o que escorria. Mas tinha dias em que o sol parecia uma
fogueira acesa de cabeça para baixo, nossos corpos se enchiam do
sumo do buriti. Eu mesma cheguei a escorregar na massa que escorria.
Da mesma forma, levávamos o azeite de dendê fabricado em nossos
quintais, quando havia, em garrafas vazias de cachaça, fechadas com
cortiças usadas. Não tínhamos animal naquele tempo, então era
preciso contar com a força dos braços para carregar as sacolas de
taboa, com as garrafas cheias de azeite, para chegar com as mãos
inchadas e dormentes de transportá-las para a feira.
O sol nos castigava com a fome e nos
restava o desalento pelas roças perdidas. Meu pai estava alquebrado,
e mesmo o jarê perdeu um pouco do brilho que havia antes. Num desses
dias, depois de acondicionarmos a massa do buriti nos sacos de
linhagem, minha mãe adoeceu com febre e forte dor de barriga, nada
ficava em seu estômago. Mas precisávamos de dinheiro, então, como
ocorria nesses casos, eu iria com as filhas de Tonha para a cidade, e
Belonísia ficaria cuidando de Domingas.
Nesse dia, segui apenas com um dos sacos
na cabeça pela estrada que levava à cidade. Sentei numa parca
sombra no cruzamento onde construíam a escola, esperando pelas
filhas de Tonha. O dia mal tinha começado, e eu colocara um dos
beijus de jatobá no estômago junto com chá de capim santo.
Belonísia ficou com minha mãe. Domingas era a menor e andava muito
mirrada, não conseguiria equilibrar o outro saco de linhagem na
cabeça. Mas havia ocorrido algum mal-entendido quando marcamos o
encontro, porque o tempo passava e as meninas não chegavam. Adormeci
apoiada numa cerca de arame que tinha sido levantada para demarcar o
terreno da escola. Fui despertada por alguém chamando por Bibiana e
levantei sobressaltada. Era Severo com um facão enterrado na bainha
em sua cintura. Tinha saído para tirar cacho de dendê para a mãe
fazer azeite. Eles também iam à feira com frequência para vender e
comprar suprimento para passar a semana.
Disse então que esperava as filhas de
Tonha, pois iríamos juntas para a cidade. Que minha mãe tinha
adoecido e ficaria sob os cuidados de Belonísia. Severo se ofereceu
para me acompanhar, a feira começava bem cedo, funcionaria até o
meio-dia. Precisávamos do dinheiro, não poderia perder a
oportunidade de vender o buriti. Era meu primo, alguém da família,
e passávamos dificuldades. Nossos pais não iriam criar caso por
isso. Severo era querido por todos, meu pai gostava de vê-lo nos
atabaques do jarê e se orgulhava de seu interesse pela crença.
Seguimos.
Era um caminho longo e ele falou sobre as
coisas que nos sucediam naquele tempo. Falou sobre a escola que não
seria suficiente para completarmos os estudos, mas que era um grande
benefício para nós que morávamos em Água Negra, carente de tudo.
Ouvi-o falar da seca, dos bichos que morriam, dos peixes cada vez
menores, das crianças que haviam morrido nos últimos meses. Ouvi-o
falar sobre nossa família, o jarê, só não conversamos sobre
Belonísia, não queria trazer minha irmã para a conversa. Não
queria lembrar a querela que o beijo de Severo havia provocado entre
a gente. Meu primo já era um homem, forte, trabalhava de sol a sol,
não tinha mais o corpo de menino de quando havia chegado. Tinha uma
estatura mediana, um sorriso largo, falava de forma desinibida, como
se conversássemos desde sempre. Como se entre nós não houvesse se
imposto um interdito pelo ciúme que senti de Belonísia, pelo medo
de nossos pais que acontecesse algo entre nós, afinal, éramos
primos, criados ali na fazenda; portanto, a proibição de namoro se
estendia a nós. Casamento entre primos não era visto com bons
olhos. Poderia nascer uma criança defeituosa, faltando um membro ou
com perturbação. Os casos eram muitos, todos tinham uma história
para contar sobre o interdito. Havia outras razões, talvez com
motivações econômicas, para não se incentivar casamentos entre
primos. Não conseguia entender exatamente por que, mas havia.
Naquele dia, nas horas que passamos juntos no caminho de ida e de
volta, na feira, não pensei em nenhuma delas. Pensei apenas que
Severo – queria afastar de meus pensamentos a lembrança do
parentesco – era um jovem homem que falava bem sobre as coisas da
terra, que tinha sentimentos bons e respeito por meus pais, seus
tios, por nossa família como um todo. Ele se sentia à vontade para
falar sobre seus sonhos, tinha planos de estudar mais e não queria
ser empregado para sempre da Fazenda Água Negra. Queria trabalhar
nas próprias terras. Queria ter ele mesmo sua fazenda, que,
diferente dos donos dali, que não conheciam muita coisa do que
tinham, que talvez não soubessem nem cavoucar a terra, muito menos a
hora de plantar de acordo com as fases da lua, nem o que poderia
nascer em sequeiro e na várzea, ele sabia de muito mais. Havia sido
parido pela terra. Achava engraçado vê-lo utilizar essa imagem para
afirmar sua aptidão para a lavoura. Nunca havia pensado que tinha
sido parida pela terra. A terra "paria" plantas e rochas. Paria
nosso alimento e minhocas. Às vezes paria diamantes, escutava dizer.
Ele falava que poderia aliar seu conhecimento da natureza e da
lavoura com sua disposição para o trabalho, além do estudo que
poderia lhe dar conhecimentos novos para mudar de vida. Eu achava
tudo aquilo interessante, mas nunca havia parado para pensar porque
estávamos ali, o que poderia modificar nessa história, o que
dependia de mim mesma ou o que dependeria das circunstâncias. Mas
ouvir as coisas que ele falava iluminou meu dia, e quis ouvir mais.
Nunca havia conhecido ninguém que me dissesse ser possível uma vida
além da fazenda. Achava que ali havia nascido e que ali morreria,
como acontecia à maioria das pessoas.
Na feira, vendemos o saco de linhagem com
a massa do buriti sem muito esforço. Com o dinheiro, passei no
armazém e comprei arroz, feijão, açúcar, farinha de milho e café.
Comprei Água Inglesa que meu pai havia prescrito a uma vizinha
gestante. Ela restituiria o valor. Voltei no meio da tarde debaixo do
sol escaldante, sem almoçar, mas na companhia de Severo. Não
esqueci aquele dia, e antes de chegar à casa havia decidido que não
deixaria mais de vê-lo, se assim também ele quisesse. Comecei a
inventar desculpas para ir colher buriti sozinha, de modo que poderia
ir para os marimbus e me comunicaria distante dos olhos de todos.
Queria experimentar a vida, para ver o que poderia nos acontecer.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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