sábado, 10 de abril de 2021

Torto Arado / 12

Em poucos meses iniciaram a construção da escola. Não soubemos como, nem quais interesses particulares envolveram a negociação entre o prefeito e a família Peixoto, mas a obra foi autorizada, e os próprios moradores passaram a construir o pequeno edifício de três salas em regime de mutirão, aos domingos, dia em que poderiam deixar de cuidar da roça – mas não poderiam deixar de dar comida e água aos animais. O local destinado à construção era o cruzamento dos caminhos para os rios Santo Antônio e Utinga.
Foi uma obra providencial, porque naquele mesmo ano se iniciou um período longo de estiagem, de modo que o pouco dinheiro destinado aos que construíam a escola, mesmo com os meses de atraso e o pequeno montante de recursos destinado ao pagamento da mão de obra, garantiu a sobrevivência de muitas famílias. Foi um tempo difícil. Meu pai se referia àquele período como a pior seca desde 1932. Aquele também foi o último ano em que vi uma plantação extensa de arroz naquelas terras. O arroz, dependente de água, foi o primeiro a secar com a estiagem. Depois secaram a cana, as vagens de feijão, os umbuzeiros, os pés de tomates, quiabo e abóbora. Havia uma reserva de grãos guardada em casa e no galpão da fazenda. Com a seca, veio o medo de que nos mandassem embora por falta de trabalho. Depois veio o medo mais imediato da fome. Os grãos passaram a rarear, o feijão acabou antes do arroz, e do arroz restava muito pouco. Havia um razoável suprimento de farinha de mandioca que algumas famílias fabricavam e trocavam por outros alimentos. Agora, mais que antes, seguíamos quase todos os dias para os rios para pescar, e a cada pescaria só conseguíamos capturar peixes cada vez menores, que só serviam para dar um gosto ao angu de farinha. Peixes grandes chegavam das cabeceiras com as enxurradas, e como não caía nem um chuvisco, restavam apenas os menos nobres e menos desenvolvidos, como o cascudo e a piaba.
Foi possível temperar os peixes enquanto havia umbu, que, junto com o sal, garantiu algum sabor à carne. Quando a farinha passou a rarear, meu pai recordou a receita do beiju de jatobá que Donana fazia. Havia vagens em abundância. Era uma árvore que resistia bem à falta d’água, frondosa, imponente, uma reserva de alimento de segunda linha, ignorada quando havia tudo o mais. Assim, comemos beiju de jatobá por meses, até enjoar.
Disputamos a palma com o gado da fazenda. Havia uma parcela de terra destinada ao seu plantio. O cacto que se destinava à nossa alimentação estava em nossos quintais. Quem não foi previdente em ter sua própria plantação de palma, que acabaria com o passar dos meses, tinha que contar com a solidariedade de um vizinho, para garantir o cortado na mesa, guisado no azeite de dendê. Também havia as caças. Mas, no alto da estiagem, era mais fácil encontrar as carcaças dos animais mortos pela falta de alimento do que encontrar algum para ser abatido. Os veados estavam escassos, seja pela caça ou pela falta de água nas áreas de sequeiro. Com muito esforço, os víamos bebendo água nos marimbus, mas estavam cada vez em menor número. A paca, muito apreciada, não dava as caras na mata. Nem capivara, nem cutia. Era possível capturar algumas aves como o jacu, inhambu e juriti, mas essas aves quase não tinham carne, então nos contentávamos com o gostinho dos ossos. Houve até o caso de uma família em Pau-de-Colher, contou tia Hermelina, que morreu depois de comer uma sariema no desespero da fome; a ave havia comido uma cascavel e sua carne estava impregnada do veneno peçonhento.
Com mais frequência conseguíamos um teiú, fácil de encontrar porque comia as carcaças dos animais mortos, do gado minguando sem pasto, das caças abatidas pela estiagem. Então, bastava ficar à espreita onde houvesse bicho morto para acossá-lo. E, se não os comêssemos, certamente eles comeriam nossa carne magra.
As crianças eram as que mais padeciam: paravam de crescer, ficavam frágeis e por qualquer coisa caíam doentes. Perdi a conta de quantas não resistiram à má alimentação e seguiram sem vida, em cortejo, para o cemitério da Viração. A morte apeava nas casas dos nossos vizinhos e, mesmo com todo esforço de Zeca Chapéu Grande para restituir a saúde e o vigor às crianças doentes, muitas não resistiam. As velas que meu pai acendia para cada criança pareciam não querer permanecer acesas: mesmo sem ventos ou golpes de ar, se apagavam. Não havia remédio, dizia sem se conformar com a sua incapacidade de reverter a situação. Que procurassem outro curador ou se conformassem com os desígnios de Deus.
Continuávamos a colher buriti e dendê para levar para a feira da cidade às segundas-feiras. Minha mãe, as comadres, eu, Belonísia e Domingas catávamos os frutos nas várzeas dos marimbus. Meu pai, Zezé e os outros moradores colhiam os cachos de dendê nos pés para prepararmos o azeite. Os buritizeiros eram altos e seus frutos não eram de serventia se colhidos nos cachos. Era preciso esperar que caíssem para que pudessem ser consumidos. Armazenávamos os frutos em grandes tonéis de água para amolecer a casca. Retirávamos com as mãos, de forma suave, para aproveitar a polpa, e levávamos aquelas massas em sacos de linhagem nas cabeças, pela estrada, para vender para as senhoras que faziam doce de buriti e sucos para vender.
Pela estrada, debaixo do sol forte, a massa do buriti aquecido escorria pelas tramas da linhagem e nos besuntava com sua polpa gordurosa e alaranjada. Nossa pele negra ficava quase acobreada. Chegávamos à cidade envergonhadas da sujeira em nosso cabelo e roupas. Levávamos tecidos enrolados embaixo da cabeça para ajudar no equilíbrio do peso e amenizar um pouco o que escorria. Mas tinha dias em que o sol parecia uma fogueira acesa de cabeça para baixo, nossos corpos se enchiam do sumo do buriti. Eu mesma cheguei a escorregar na massa que escorria. Da mesma forma, levávamos o azeite de dendê fabricado em nossos quintais, quando havia, em garrafas vazias de cachaça, fechadas com cortiças usadas. Não tínhamos animal naquele tempo, então era preciso contar com a força dos braços para carregar as sacolas de taboa, com as garrafas cheias de azeite, para chegar com as mãos inchadas e dormentes de transportá-las para a feira.
O sol nos castigava com a fome e nos restava o desalento pelas roças perdidas. Meu pai estava alquebrado, e mesmo o jarê perdeu um pouco do brilho que havia antes. Num desses dias, depois de acondicionarmos a massa do buriti nos sacos de linhagem, minha mãe adoeceu com febre e forte dor de barriga, nada ficava em seu estômago. Mas precisávamos de dinheiro, então, como ocorria nesses casos, eu iria com as filhas de Tonha para a cidade, e Belonísia ficaria cuidando de Domingas.
Nesse dia, segui apenas com um dos sacos na cabeça pela estrada que levava à cidade. Sentei numa parca sombra no cruzamento onde construíam a escola, esperando pelas filhas de Tonha. O dia mal tinha começado, e eu colocara um dos beijus de jatobá no estômago junto com chá de capim santo. Belonísia ficou com minha mãe. Domingas era a menor e andava muito mirrada, não conseguiria equilibrar o outro saco de linhagem na cabeça. Mas havia ocorrido algum mal-entendido quando marcamos o encontro, porque o tempo passava e as meninas não chegavam. Adormeci apoiada numa cerca de arame que tinha sido levantada para demarcar o terreno da escola. Fui despertada por alguém chamando por Bibiana e levantei sobressaltada. Era Severo com um facão enterrado na bainha em sua cintura. Tinha saído para tirar cacho de dendê para a mãe fazer azeite. Eles também iam à feira com frequência para vender e comprar suprimento para passar a semana.
Disse então que esperava as filhas de Tonha, pois iríamos juntas para a cidade. Que minha mãe tinha adoecido e ficaria sob os cuidados de Belonísia. Severo se ofereceu para me acompanhar, a feira começava bem cedo, funcionaria até o meio-dia. Precisávamos do dinheiro, não poderia perder a oportunidade de vender o buriti. Era meu primo, alguém da família, e passávamos dificuldades. Nossos pais não iriam criar caso por isso. Severo era querido por todos, meu pai gostava de vê-lo nos atabaques do jarê e se orgulhava de seu interesse pela crença.
Seguimos.
Era um caminho longo e ele falou sobre as coisas que nos sucediam naquele tempo. Falou sobre a escola que não seria suficiente para completarmos os estudos, mas que era um grande benefício para nós que morávamos em Água Negra, carente de tudo. Ouvi-o falar da seca, dos bichos que morriam, dos peixes cada vez menores, das crianças que haviam morrido nos últimos meses. Ouvi-o falar sobre nossa família, o jarê, só não conversamos sobre Belonísia, não queria trazer minha irmã para a conversa. Não queria lembrar a querela que o beijo de Severo havia provocado entre a gente. Meu primo já era um homem, forte, trabalhava de sol a sol, não tinha mais o corpo de menino de quando havia chegado. Tinha uma estatura mediana, um sorriso largo, falava de forma desinibida, como se conversássemos desde sempre. Como se entre nós não houvesse se imposto um interdito pelo ciúme que senti de Belonísia, pelo medo de nossos pais que acontecesse algo entre nós, afinal, éramos primos, criados ali na fazenda; portanto, a proibição de namoro se estendia a nós. Casamento entre primos não era visto com bons olhos. Poderia nascer uma criança defeituosa, faltando um membro ou com perturbação. Os casos eram muitos, todos tinham uma história para contar sobre o interdito. Havia outras razões, talvez com motivações econômicas, para não se incentivar casamentos entre primos. Não conseguia entender exatamente por que, mas havia. Naquele dia, nas horas que passamos juntos no caminho de ida e de volta, na feira, não pensei em nenhuma delas. Pensei apenas que Severo – queria afastar de meus pensamentos a lembrança do parentesco – era um jovem homem que falava bem sobre as coisas da terra, que tinha sentimentos bons e respeito por meus pais, seus tios, por nossa família como um todo. Ele se sentia à vontade para falar sobre seus sonhos, tinha planos de estudar mais e não queria ser empregado para sempre da Fazenda Água Negra. Queria trabalhar nas próprias terras. Queria ter ele mesmo sua fazenda, que, diferente dos donos dali, que não conheciam muita coisa do que tinham, que talvez não soubessem nem cavoucar a terra, muito menos a hora de plantar de acordo com as fases da lua, nem o que poderia nascer em sequeiro e na várzea, ele sabia de muito mais. Havia sido parido pela terra. Achava engraçado vê-lo utilizar essa imagem para afirmar sua aptidão para a lavoura. Nunca havia pensado que tinha sido parida pela terra. A terra "paria" plantas e rochas. Paria nosso alimento e minhocas. Às vezes paria diamantes, escutava dizer. Ele falava que poderia aliar seu conhecimento da natureza e da lavoura com sua disposição para o trabalho, além do estudo que poderia lhe dar conhecimentos novos para mudar de vida. Eu achava tudo aquilo interessante, mas nunca havia parado para pensar porque estávamos ali, o que poderia modificar nessa história, o que dependia de mim mesma ou o que dependeria das circunstâncias. Mas ouvir as coisas que ele falava iluminou meu dia, e quis ouvir mais. Nunca havia conhecido ninguém que me dissesse ser possível uma vida além da fazenda. Achava que ali havia nascido e que ali morreria, como acontecia à maioria das pessoas.
Na feira, vendemos o saco de linhagem com a massa do buriti sem muito esforço. Com o dinheiro, passei no armazém e comprei arroz, feijão, açúcar, farinha de milho e café. Comprei Água Inglesa que meu pai havia prescrito a uma vizinha gestante. Ela restituiria o valor. Voltei no meio da tarde debaixo do sol escaldante, sem almoçar, mas na companhia de Severo. Não esqueci aquele dia, e antes de chegar à casa havia decidido que não deixaria mais de vê-lo, se assim também ele quisesse. Comecei a inventar desculpas para ir colher buriti sozinha, de modo que poderia ir para os marimbus e me comunicaria distante dos olhos de todos. Queria experimentar a vida, para ver o que poderia nos acontecer.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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