Diálogo
— Estás com sono?
— Não, senhor.
— Nem eu; conversemos um pouco. Abre a
janela. Que horas são?
— Onze.
— Saiu o último conviva do nosso
modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um
anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à
luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns
namoros...
— Papai...
— Não te ponhas com denguices, e
falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te
coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas
apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura,
na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou
nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu
rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos
Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um
anos. Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo
é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te
levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme
loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os
suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra.
Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas
integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e
ir por diante.
— Sim, senhor.
— Entretanto, assim como é de boa
economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa
prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os
outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa
ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.
— Creia que lhe agradeço; mas que
ofício, não me dirá?
— Nenhum me parece mais útil e cabido
que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade;
faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês,
sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que
deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És
moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da
idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e
cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do
compasso. O sábio que disse: “a gravidade é um mistério do
corpo”, definiu a compostura do medalhão. Não confundas essa
gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um puro
reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do
corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade de
quarenta e cinco anos...
— É verdade, por que quarenta e cinco
anos?
— Não é, como podes supor, um limite
arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenômeno.
Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os
quarenta e cinco e cinquenta anos, conquanto alguns exemplos se deem
entre os cinquenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há-os
também de quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e
de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo dos de vinte e
cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio.
— Entendo.
— Venhamos ao principal. Uma vez
entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que
houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as
ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por
exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um
milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da plateia; mas
era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as ideias;
pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas
nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao
exercício da vida.
— Mas quem lhe diz que eu...
— Tu, meu filho, se me não engano,
pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste
nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes
numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque
esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode
não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto
correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas
simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões
de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma
eloquente, eis aí uma esperança, No entanto, podendo acontecer que,
com a idade, venhas a ser afligido de algumas ideias próprias, urge
aparelhar fortemente o espírito. As ideias são de sua natureza
espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e
precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é
extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão
incompleto.
— Creio que assim seja; mas um tal
obstáculo é invencível.
— Não é; há um meio; é lançar mão
de um regime debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos
discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist são remédios
aprovados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao
silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção. Não
digo o mesmo da natação, da equitação e da ginástica, embora
elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem
repousar, restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é
excelente.
— Como assim, se também é um
exercício corporal?
— Não digo que não, mas há coisas em
que a observação desmente a teoria. Se te aconselho
excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais
escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco
partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente
nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não
andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de ideias, e o
espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode
adquirir uma tal ou qual atividade.
— Mas se eu não tiver à mão um amigo
apto e disposto a ir comigo?
— Não faz mal; tens o valente recurso
de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se
dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por
qualquer outra, razão que me escapa, não são propícias ao nosso
fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas,
de quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras.
Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do
boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma
calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras
interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas de
Mazade; 75 por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as
mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável. Com
este regime, durante oito, dez, dezoito meses — suponhamos dois
anos, — reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à
sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do
vocabulário, porque ele está subentendido no uso das ideias; há de
ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem
cores de clarim...
— Isto é o diabo! Não poder adornar o
estilo, de quando em quando...
— Podes; podes empregar umas quantas
figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de
Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que
românticos, clássicos e realistas empregam sem desar, quando
precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos
célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los
contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de
agradecimento. Caveant consules é um excelente fecho de
artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum.
Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa
frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício:
seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso,
porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas,
as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos,
incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a
vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as
relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofício
te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o
pensado. Quanto à utilidade de um tal sistema, basta figurar uma
hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o
mal. Eis aí uma questão que pode aguçar as curiosidades vadias,
dar ensejo a um inquérito pedantesco, a uma coleta fastidiosa de
documentos e observações, análise das causas prováveis, causas
certas, causas possíveis, um estudo infinito das aptidões do
sujeito reformado, da natureza do mal, da manipulação do remédio,
das circunstâncias da aplicação; matéria, enfim, para todo um
andaime de palavras, conceitos, e desvarios. Tu poupas aos teus
semelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes
das leis, reformemos os costumes! — E esta frase sintética,
transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais
depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de
sol.
— Vejo por aí que vosmecê condena
toda e qualquer aplicação de processos modernos.
— Entendamo-nos. Condeno a aplicação,
louvo a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia
científica; deves decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão
seja uma certa atitude de deus Término, e as ciências sejam obra do
movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde, convém
tomar as armas do teu tempo. E de duas uma: — ou elas estarão
usadas e divulgadas daqui a trinta anos, ou conservar-se-ão novas;
no primeiro caso, pertencem-te de foro próprio; no segundo, podes
ter a coquetice de as trazer, para mostrar que também és pintor. De
outiva, com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos
responde toda essa terminologia; porque o método de interrogar os
próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e
memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular
ideias novas, e é radicalmente falso. Acresce que no dia em que
viesses a assenhorear-te do espírito daquelas leis e fórmulas,
serias provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual
comedimento, como a costureira esperta e afreguesada, — que,
segundo um poeta clássico, Quanto mais pano tem, mais poupa o corte,
Menos monte alardeia de retalhos; e este fenômeno, tratando-se de um
medalhão, é que não seria científico.
— Upa! que a profissão é difícil!
— E ainda não chegamos ao cabo.
— Vamos a ele.
— Não te falei ainda dos benefícios
da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu
deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas,
coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o
atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite os favores dela
mediante, ações heroicas ou custosas, é um sestro próprio desse
ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe
de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros,
compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja
notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia
traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do
mundo. Comissões ou deputações para felicitar um agraciado, um
benemérito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e assim as
irmandades e associações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas
ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta,
podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua
pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano, além do
susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em
si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro
às afeições gerais. Percebeste?
— Percebi.
— Essa é publicidade constante,
barata, fácil, de todos os dias; mas há outra. Qualquer que seja a
teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento da família, a
amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução das
feições de um homem amado ou benemérito. Nada obsta a que sejas
objeto de uma tal distinção, principalmente se a sagacidade dos
amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante caso, não só as
regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto,
como seria desazado impedir que os amigos o expusessem em qualquer
casa pública. Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que
houverem lido o teu recente discurso (suponhamos) na sessão
inaugural da União dos Cabeleireiros, reconhecerão na compostura
das feições o autor dessa obra grave, em que a “alavanca do
progresso” e o “suor do trabalho” vencem as “fauces hiantes”
da miséria. No caso de que uma comissão te leve a casa o retrato,
deves agradecer-lhe o obséquio com um discurso cheio de gratidão e
um copo d'água: é uso antigo, razoável e honesto. Convidarás
então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou
duas pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de
glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um
lugar à mesa aos reporters dos jornais. Em todo o caso, se as
obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes
ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa;
e, dado que por um tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não
queiras com a própria mão anexar ao teu nome os qualificativos
dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente.
— Digo-lhe que o que vosmecê me ensina
não é nada fácil.
— Nem eu te digo outra coisa. É
difícil, come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e
felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não
penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu
triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das
trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa
nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada,
de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões,
irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de
substantivos desadjetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações
opacas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o
prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos
relatórios. E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma
do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a
realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.
— E parece-lhe que todo esse ofício é
apenas um sobressalente para os deficits da vida?
— Decerto; não fica excluída nenhuma
outra atividade.
— Nem política?
— Nem política. Toda a questão é não
infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a
qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou
ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma ideia
especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe somente a utilidade do
scibboleth bíblico.
— Se for ao parlamento, posso ocupar a
tribuna?
— Podes e deves; é um modo de convocar
a atenção pública. Quanto à matéria dos discursos, tens à
escolha:
— ou os negócios miúdos, ou a
metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios
miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de
bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a
metafísica; — é mais fácil e mais atraente. Supõe que desejas
saber por que motivo a 7ª companhia de infantaria foi transferida de
Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo ministro da
guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não
assim a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona
naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as
respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos
conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado,
encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo caso, não
transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade.
— Farei o que puder. Nenhuma
imaginação?
— Nenhuma; antes faze correr o boato de
que um tal dom é ínfimo.
— Nenhuma filosofia?
— Entendamo-nos: no papel e na língua
alguma, na realidade nada. “Filosofia da história”, por exemplo,
é uma locução que deves empregar com frequência, mas proíbo-te
que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por
outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade,
etc., etc.
— Também ao riso?
— Como ao riso?
— Ficar sério, muito sério...
— Conforme. Tens um gênio folgazão,
prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e
rir alguma vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave pode
ter seus momentos de expansão alegre. Somente, — e este ponto é
melindroso...
— Diga...
— Somente não deves empregar a ironia,
esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por
algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a
Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não.
Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda,
franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros,
estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar
de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?
— Meia-noite.
— Meia-noite? Entras nos teus vinte e
dois anos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir,
que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as
proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de
Machiavelli. Vamos dormir.
Machado de Assis, in Papéis Avulsos
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