Na
estrada das Tabocas, uma vaca viajava. Vinha pelo meio do caminho,
como uma criatura cristã. A vaquinha vermelha, a cor grossa e
afundada — o tom intenso de azamar. Ela solevava as ancas, no trote
balançado e manso, seus cascos no chão batiam poeira. Nem hesitava
nas encruzilhadas. Sacudia os chifres, recurvos em coroa, e baixava
testa, ao rumo, que reto a trazia, para o rio, e — para lá do rio
— a terras de um Major Quitério, nos confins do dia, à fazenda do
Pãodolhão.
No
Arcanjo, onde a estrada borda o povoado, foi notada, e, vendo que era
uma rês fujã, tentaram rebatê-la; se esvencilhou, feroz, e foi-se,
porém. De beira dos pastos, os anus, que voavam cruzando-a,
desvinham de pousar-lhe às costas. No riachinho do Gonçalves, quase
findo à míngua d’água, se deteve para beber. Deram tiros, no
campo, caçando às codornas. Latidos, noutra parte, faziam-na entrar
oculta no cerrado. Ora corriam dela umas mulheres, que andavam
buscando lenha. Se encontrava cavaleiros, sabia deles se alonjar,
colada ao tapume, com disfarces: sonsa curvada a pastar, no sofrido
simulamento. Légua adiante, entanto, nos Antônios, desabalava em
galope, espandongada, ao passar por currais, donde ouvia gente e não
era ainda o seu termo. Tio Terêncio, o velho, à porta de casa,
conversou com o outro: — “Meo
fi’o, q’vaca qu’é essa?”
— “Nho pai, e’a n’é
nossa, não.” Seguia,
certa; por amor, não por acaso.
Só,
assim, a vaquinha se fugira, da Pedra, madrugadamente — entre o
primeiro canto dos melros e o terceiro dos galos — o sol saindo à
sua frente, num céu quase da sua cor. Fazia parte de um gado,
transportado, de boiadeiros, gado de coração ativo. Viera do
Pãodolhão — sua querência. Apressava-se nela o empolgo de
saudade que adoece o boi sertanejo em terra estranha, cada outubro,
no prever os trovões. Apanhara a boca-da-estrada — para os onde
caminhos — fronteando o nascente. Soada a notícia, seo Rigério, o
dono da Pedra, disse: — “Diaba”.
Ele era alto, o homem, para tão pequenina coisa. Seus sabedores
informavam: que a marca sendo a de grande fazendeiro, da outra banda,
distante. Seus vaqueiros, postos, prontos. Esse seo Rigério tinha os
filhos diversos, que por em volta se achavam. Nem deles, para o quê,
havia a necessidade. E vede de que maneira tudo então se passou. Só
um dos filhos, rapaz, senhor-moço, quis-se, de repente, para aquilo:
levar em brio e tomar em conta. Atou o laço na garupa. Disse: — “É
uma vaquinha pitanga?”
Pôs-se a cavalo. Soubesse o que por lá o botava, se capaz. Saiu à
estrada-geral. Ia indo, à espora leve. Ia desconhecidamente. Indo de
oeste para leste. Já a vaca. O avanço, que levava, não se lhe dava
de o bastante. Ante o morro, a passo, breve, nem parava para os
capins dos barrancos: arrancava-os, mesmo em marcha, no mesmo surdo
insossego. Se subia — cabeceava, num desconjuntado trabalho de si.
Se descia — era beira-abismos, patas abertas, se borneando. Após,
no plano, trotava. Agora, lá num campal, outras vacas se avistavam.
Olhava-as: alteou-se e berrou — o berro encheu a região tristonha.
O dia era grande, azul e branco, por cima de matos e poeiras. O sol
inteiro.
Já o
rapaz se anorteava. Só via o horizonte e sim. Sabia o de uma
vaquinha fugida: que, de alma, marca o rumo e faz atalhos —
querençosa. Entrequanto, ele perguntava. Davam-lhe novas da
arribada. Seu cavalo murça se aplicava, indo noutra forma, ligeiro.
Sabia que coisa era o tempo, a involuntária aventura. E esquipava.
Ia o longo, longo, longo. Deu patas à fantasia. Ali, escampava.
Tempo sem chuvas, terrentas campinas, os tabuleiros tão sujos,
campos sem fisionomia. O rapaz ora se cansava. Desde aí, o muito
descansou. Do que, após, se atormentava. Apertou.
Com
horas de diferença, a vaquinha providenciava. Aqui alta cerca a
parou, foi seguindo-a, beira, beira. Dava num córrego. No córrego a
vaquinha entrou, veio vindo, dentro d’água. Três vezes esperta.
Até que outra cerca travou-a, ia deixando-a desairada. Volveu —
irrompida ida: de um ímpeto então a saltou: num salto que queria
ser vôo. Vencia. E além se sumia a vaca vermelha, suspensa em
bailado, a cauda oscilando. O inimigo já vinha perto.
O
rapaz, no vão do mundo, assim vocado e ordenado. Ele agora se
irritava. Pensou de arrepender caminho, suspender aquilo para mais
tarde. Pensou palavra. O estúpido em que se julgava.
Desanimadamente, ele, malandante, podia tirar atrás. Aonde um animal
o levava? O incomeçado, o empatoso, o desnorte, o necessário.
Voltasse sem ela, passava vergonha. Por que tinha assim tentado?
Triste em torno. Só as encostas guardando o florir de árvores
esfolhadas: seu roxo-escuro de julho as carobinhas, ipês seu amarelo
de agosto. Só via os longes de um quadro. O absurdo ar. Chatos
mapas. O céu de se abismar. E indagava o chão, rastreava. Agora,
manchava o campo a sombra grande de uma nuvem. O rapaz lançou longe
um olhar. De repente, ajustou a mão à testa, e exclamou. Do ponto,
descortinou que: aquela. A vaquinha, respoeirando. Aí e lá, tomou-a
em vista. O vulto, pé de pessoa, que a cumeada do morro escalava.
Ver o que diabo. Reduzida, ocupou, um instante, a lomba linha do
espigão. Aí, se afundou para o de lá, e se escondeu de seus olhos.
Transcendia ao que se destinava.
O
rapaz, durante e tanto, montado no bom cavalo, à espora avante,
galgando. Sempre e agudamente olhava. Podia seguir com os olhos como
o rastro se formava. Só perseguia a paisagem. Preparava-se uma
vastidão: de manchas cinzas e amarelas. O céu também em amarelo.
Pitavam extensões de campo, no virar do sol, das queimadas; altas,
mais altas, azuis, as fumaças desmanchavam-se. O rapaz —
desdobrada vida — se pensou: — “Seja
o que seja.”
Aí,
subia também ao morro, de onde muito se enxergava: antes das portas
do longe, as colinas convalares — e um rio, em suas baixadas, em
sua várzea empalmeirada. O rio, liso e brilhante, de movimentos
invisíveis. Como cortando o mundo em dois, no caminho se atravessava
— sem som. Seriam buracos negros, as sombras perto das margens.
Depois
dos destornamentos, a vaquinha chegava à beira, às derradeiras
canas-bravas. Com roubada rapidez, ia a levantar o desterro. Foi uma
mexidinha figura — quase que mal os dois chifres nadando — a vaca
vermelha o transpondo, a esse rio, de tardinha; que em setembro. Sob
o céu que recebia a noite, e que as fumaças chamava.
Outrarte
o ouro esboço do crepúsculo. O rapaz, o cavalo bom, como vinham,
contornando. Antes do rio não viam: as aves, que já ninhavam. À
beira, na tardação, não queria desastrar-se, de nada; pensava. Às
pausas, parte por parte. Não ouviu sino de vésperas. Tinha de
perder de ganhar? Já que sim e já que não, pensou assim: jamais,
jamenos... — o filho de seo Rigério. A fatal perseguição, podia
quebrar e quitar-se. Hesitou, se. Por certo não passaria, sem o que
ele mesmo não sabia — a oculta, súbita saudade. Passo extremo!
Pegou a descalçar as botas. E entrou — de peito feito. Àquelas
qüilas águas trans — às braças. Era um rio e seu além. Estava,
já, do outro lado.
— “A
vaca?” — e apertava
o encalço — à boa espora, à rédea larga. Mas a vaca era uma
malícia, precipitava-se o logro. Nisso, anoiteceu. E não é que,
seu cavalo, o murça, se sentia — da viagem de pêlo a pêlo: os
joelhos bambeava, descaía, quase caía para a frente o cavaleiro.
Iam-se,
na ceguez da noite — à casa da mãe do breu: a vaca, o homem, a
vaca — transeuntes, galopando. — “Onde
então o Pãodolhão? Cujo dono? Vinha-se a qual destinatário?”
Pelas vertentes, distante, e até ao cimo do monte, um campo se
incendiava: faíscas
— as primeiras estrelas. O andamento. O rapaz: obcego. Sofria como
podia, nem podia mais desespero. O arrepio negro das árvores. O
mundo entre as estrelas e os grilos. Semiluz: sós estrelas. Onde e
aonde? A vaca, essa, sabia: por amor desses lugares.
Chegava,
chegavam. Os pastos da vasta fazenda. A vaca surgia-se na treva.
Mugiu, arrancadamente. Remugiu em fim. A um bago de luz, lá, lá. Às
luzes que pontilhavam, acolá, as janelas da casa, grande. Só era
uma luz de entrequanto? A casa de um Major Quitério.
O rapaz
e a vaca se entravam pela porteira-mestra dos currais. O rapaz
desapeava. Sob o estúrdio atontamento, começou a subir a escada.
Tanto tinha de explicar.
Tanto
ele era o bem-chegado!
A uma
roda de pessoas. Às quatro moças da casa. A uma delas, a segunda.
Era alta, alva, amável. Ela se desescondia dele. Inesperavam-se? O
moço compreendeu-se. Aquilo mudava o acontecido. Da vaca, ele a ela
diria: — “É sua.” Suas duas almas se transformavam? E tudo à
sazão do ser. No mundo nem há parvoíces: o mel do maravilhoso,
vindo a tais horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se.
E a
vaca — vitória, em seus ondes, por seus passos.
Guimarães Rosa, in Primeiras estórias
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