Eu não estaria aqui, onde quer que esse
aqui seja, definitivamente não estaria, se daquele rádio de
válvulas não saísse pela primeira vez lá em nem sei quando, lá
não sei mais em que priscas eras, o Carlos José cantando que
vestida de branco de véu e grinalda lá vinha Esmeralda casar na
igreja, uma balada triste como não sei o quê, um papo chororô que
não tinha nada a ver com minhas bolas de gude, meus gibis do
Cavaleiro Negro e meus gois ao estilo Dida, tudo num papo morbeza
romântica que eu não entendia direito e até hoje idem, eu que
certamente já tinha ouvido outras tantas músicas do Carequinha e do
Arrelia, mas, vai entender, eu não sabia que aquela balada triste me
ficaria velha amiga e companheira como a primeira, a mais antiga
memória de um texto cantado em mi vida.
Definitivamente eu não estaria aqui,
malgrado todo o Paulo Mendes Campos de depois, bengrado todos os
relatórios do Graciliano em Palmeira dos índios de após, eu aqui
não estaria e nonada teria a ver com isso ao derredor se não viesse
em seguida um chorrilho de outros textos em canção, coisas ainda
mais lamentosas como a do campónio dizendo a sua amada, minha
idolatrada diga o que quer, coisas até alegres como o Orlando Silva
perguntando pra garota o que que há com a sua baratinha que não
quer funcionar, sendo que baratinha evidentemente podia ser até um
carro pequeno e a pequena podia ser até todas as curvas do circuito
da Gávea.
As letras das músicas podiam ser tantas
coisas e, já que eu ainda não sabia de baratinha alguma, eu ia
simplesmente comendo todas as canções, e foram tantos outros textos
musicados escapando das válvulas, coisas que nunca soube se geniais
ou, quero beijar tuas mãos minha querida, se ingênuas, mas que
marcam, fixam no cerebelo direito, entrecruzam com o PH dos hormônios
à esquerda, e hoje me parecem a voz dos anjos condutores.
Dóris Monteiro eternamente tocando num
dial qualquer da minha cuca bom mesmo é Café Capital, e eu, sem
querer discutir com a memória, junto o café com o leite em pó da
vaquinha Mococa que está mugindo, a vaquinha Mococa sempre dizendo,
eu junto todos esses sons que vieram lá de trás, lá de quando
ainda não havia mentalidade crítica, não se era sequer o garoto
que amava os Beatles e o Dave Clark Five, era apenas um garoto
jogando tudo pra dentro com o mesmo prazer que fazia com a bolacha
Maria, aquela que borrava-se de manteiga, depois pregava-se outra por
cima, apertava-se uma Maria amanteigada contra a outra Maria idem, e
lambia-se gostoso tudo o que lhes escapava pelos buraquinhos, lambia-
se sem saber que era o destino, lambuzava-se com todas essas músicas
sem loção de que elas estavam moldando a existência de suas
futuras palavras e sentimentos.
Todas até hoje na cabeça me lembrando
que ninguém é de ninguém na vida tudo passa, que garota você é
uma gostosura proibida pela censura, e que diante dessas palavrinhas
que foram argamassando sei lá que sentido em mi vida, sei lá que
frêmito em mi divinal querer, sei lá que mancha naquela toalha que
esqueceste e onde estava escrito bom-dia, diante dessas notas mágicas
eu só sei dizer, mais ou menos como Manuel Bandeira, que teve no
porquinho-da-índia a sua primeira namorada, que a música de rádio
foi a minha.
Ninguém me ama, ninguém me quer,
ninguém é obrigado a me chamar de Paul Auster nem a acreditar no
que vos digo, isto é apenas uma crônica ligeira, como o passo do
elefantinho, mas me ponham fé que eu liguei o rádio de novo nessas
músicas antigas apenas porque anunciaram e garantiram que o mundo ia
não só se acabar, mas que o prefeito aproveitara a confusão para
proibir a merenda politicamente incorreta nas escolas.
Eu, que de início ia escrever apenas
para protestar contra essa intromissão na merenda das criancinhas
alheias, foi só dar uma mordida no sanduíche de ovo frito que eu
levava para o pátio no primário, ou antes ainda, foi só
desembrulhar o sanduíche de ovo frito do papel de pão em que minha
mãe embalava o torpedo calórico, ou talvez um pouco antes mesmo,
foi já quando tirei o barbante que a dona Hilda laçava em volta de
toda essa escultura de carinho e colesterol. Não sei. Foi por aí.
Sei lã.
Sei que foi só puxar essa madeleine
suburbana e já aí as músicas que me fizeram chegar até aqui
começaram a tocar todas de novo, pois era um tempo em que não havia
merenda errada e muito menos música certa, tanto as autoridades
constituídas me deixavam em paz e orgulhoso com um sanduíche de
fiambrada de porco Wilson como os espertos não me aborreciam se em
tal noite eu queria que o mundo acabasse, pois, não tenho certeza se
a vida era melhor ou pior, dá muita ilusão de ótica quando a gente
olha o passado, mas visto assim do alto, olhando aqui de longe, todo
mundo sempre parece mais feliz e menos complicado lá atrás.
Basta dizer que lá em casa mesmo tinha
um bigorrilho e esse bigorrilho não só fazia mingau como tirava o
cavaco do pau, e isso era suficiente para deixar a minha imaginação
a mil, mais ensandecida que a do Pedrinho sob o pó de pirlimpimpim,
uma imaginação suburbanamente sem preconceito, pois também já
havia gente que levava uma maçã para o recreio e ninguém ria,
assim como na vizinhança havia uma dona bem-feita de corpo, cheia da
nota, mas que escrevia gato com jota e saudade com cê, e ninguém
ria dela também, ninguém estava nem aí.
O bom e o mau gosto, pelo menos em
merenda e música, não eram assuntos de decreto, e eu só queria da
primeira o tutano, que me prometia realçar o desenho dos bíceps, e
da segunda, fica comigo esta noite, que me antecipasse, cantando, o
mistério da vida, o prazer das palavras e o recreio futuro da boca
molhada e ainda marcada pelo beijo seu.
Joaquim Ferreira dos Santos, in Em busca do borogodó perdido
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