domingo, 11 de abril de 2021

Cadeia dos acontecimentos

Há muito que se creem os acontecimentos encadeados uns aos outros por invencível fatalidade – o Destino – que é em Homero superior ao próprio Júpiter. Sem refolhos confessava o soberano dos deuses e dos homens não poder impedir que seu filho Sarpédon morresse no prazo preestabelecido. No momento em que devia nascer Sarpédon nascera, nem poderia deixar de ser assim. Não podia morrer em outro lugar senão diante de Tróia. Não podia ser enterrado senão em Lícia. Seu corpo, no prazo preestabelecido, produziria legumes que se transmudariam em substância de alguns licienses. Seus herdeiros haveriam de estabelecer nova ordem em seus estados. Essa nova ordem influiria nos reinos vizinhos. Do que resultariam novas disposições de guerra e paz com os vizinhos dos vizinhos de Lícia. E assim sucessivamente o destino da terra dependeu da morte de Sarpédon, a qual dependeu de outro acontecimento, que por seu turno se ata por intermédio de outros à origem das coisas.
Tivesse um único desses fatos acontecido diferentemente, outro fora o mundo. Ora, impossível que o mundo atual existisse e não existisse ao mesmo tempo: portanto impossível fora a Júpiter salvar a vida do filho, por muito Júpiter que fosse.
Diz-se que este sistema da necessidade e fatalidade inventou-o Leibnitz em nossos dias, chamando-lhe razão suficiente. Entretanto é antiquíssimo. Não é de hoje que não há efeito sem causa e que muitas vezes a mais insignificante das causas produz os maiores efeitos.
Conta o sr. Bolingbroke que lhe proporcionaram ocasião de concertar o tratado particular da rainha Ana com Luís XIV as questiúnculas da sra. Marlborough e da sra. Masham. Esse tratado conduziu à paz de Utrecht. A paz de Utrecht firmou Filipe V no trono de Espanha. Filipe V conquistou Nápoles e Sicília à frente da casa da Áustria. Deve o príncipe que é atualmente rei de Nápoles seu trono à sra Masbam. Não o seria, talvez nem existisse, se a duquesa de Marlborough tivesse sido mais complacente para com a rainha de Inglaterra. Sua existência dependia em Nápoles de uma tolice a mais ou a menos na corte londrina. Examinai a situação de todos os povos do mundo: é o que é por força de uma série de acontecimentos aparentemente insulados, porém realmente baraçados em íntimo emaranhamento. São tudo rodagens, polés, cabos, molas dessa máquina colossal.
O mesmo sucede na ordem física. Um vento que sopre do fundo da África ou dos mares austrais acarreta parte da atmosfera africana que recai em chuva nos declívios dos Alpes. Essas chuvas fecundam nossas terras. Nosso vento do norte, por sua vez, leva nossos vapores daqui para o continente negro. Nós beneficiamos a Guiné e a Guiné nos beneficia. A cadeia se estende de cabo a cabo do mundo.
Parece-me contudo abusar-se demais desse princípio. Conclui-se não haver e mais ínfimo átomo que não tenha influído na disposição atual do mundo inteiro. Que não há o menor acidente, quer entre os homens, quer entre os animais, que não seja anel essencial da grande cadeia do destino.
Entendo eu: todo efeito tem evidentemente sua causa, remontante de causa em causa até o abismo da eternidade. Mas nem toda causa transmite seu efeito até o fim dos séculos. Todo acontecimento decorre um de outro, admito. O presente sai do passado. O futuro sairá do presente. Tudo tem pai. Mas nem tudo tem filhos. Precisamente como numa árvore genealógica: toda família remonta, como é sabido, a Adão, mas na família muitos indivíduos morrem sem deixar posteridade.
Existe uma árvore genealógica dos acontecimentos. Incontestavelmente os habitantes das Gálias e de Espanha descendem de Gomer e os russos de Magogue, seu irmão mais novo: encontra-se esta genealogia em tantos livros maçudos! Nesse pé, não há negar devermos a Magogue os sessenta mil russos em armas hoje às portas da Pomerânia e os sessenta mil franceses que combatem nas abas de Francfort. Mas que Magogue haja expectorado à direita ou à esquerda ao pé do Cáucaso, tenha dado duas ou três voltas em redor de um poço, haja dormido do lado esquerdo ou direito, não vejo como possa isso ter influído capitalmente na resolução tomada pela imperatriz da Rússia Elizabete de enviar um exército em socorro da imperatriz romana Maria Teresa. Que meu cão sonhe ou não quando dorme, não percebo que relação poderá ter tão importante fato com os negócios do grão mogol.
É necessário atentar em que nem tudo é cheio na natureza e que nem todo movimento se transmite consecutivamente até descrever a volta ao mundo. Lance-se n’água um corpo de mesma densidade. Facilmente se compreenderá que ao cabo de algum tempo assim o movimento do corpo como aquele que comunicou à água se extinguem. O movimento consome-se e repara-se. Por conseguinte o movimento que possa ter produzido Magogue escarrando num poço não pode ter influência no que hoje se passa. na Rússia e na Prússia. Nem todos os acontecimentos pretéritos são pais dos acontecimentos presentes. Todo acontecimento atual provém em linhas diretas do passado. Porém milhares de linhas colaterais há que em nada os interessam. Repitamos: tudo tem pai, mas nem tudo tem filhos. Retornaremos ao assunto ao falar do Destino.

Voltaire, in Dicionário Filosófico

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