sábado, 6 de março de 2021

Upgrade

          Eu falo demais. Às vezes enquanto estou falando, falando, falando, chega aquele momento, bem no meio da conversa, em que percebo que a pessoa do meu lado já não está prestando atenção. Continua a mover a cabeça, mas os seus olhos estão completamente anuviados. Está pensando em outra coisa, algo melhor do que aquilo que tenho para dizer.
Eu poderia discordar dessa hipótese, é natural. Poderia discordar de tudo. Minha mulher diz que eu seria capaz de discutir com um abajur. Eu poderia discutir a questão com o sujeito ao meu lado, mas não há prazer nisto. Ele já não presta atenção em mim. Está em outro mundo. Um mundo melhor, ao menos na opinião dele. E eu? Continuo falando, falando, falando. Como um carro cujo freio de mão está puxado, as rodas travadas, mas que continua a deslizar na pista.
Gostaria de parar de falar. De fato, gostaria. Mas as palavras, as frases, as ideias têm uma energia própria. É impossível simplesmente detê-las, trancar os lábios e interromper as palavras, bem ali, no meio de uma frase. Há pessoas que são capazes de fazer isto, eu sei.
Principalmente mulheres.
E quando elas silenciam, isto desperta culpa em quem se encontra perto delas. Provoca no ouvinte um desejo, uma profunda necessidade de inclinar-se para a frente, abraçá-las e dizer, “Lamento”.
Dizer, “Eu te amo.”
Eu daria tudo para ser capaz de fazer isto, esta bendita parada. Eu a aproveitaria muito bem. Eu pararia de falar perto das garotas que realmente valem a pena, e elas desejariam me abraçar, me apertar, me dizer, “Amo você.” E mesmo se no final elas não o fizessem, o simples fato de quererem teria valido alguma coisa. Valido muito.
Naquele dia não consigo parar de falar com um homem chamado Michael. Ele é designer gráfico de um jornal ultraortodoxo no Brooklyn, e estava viajando de Nova York para Louisville, no Kentucky, para fazer companhia ao tio na sucá. Ele não é especialmente próximo ao tio, nem gosta muito especialmente de Louisville, mas o tio lhe enviou a passagem de presente, e Michael é louco pelas milhagens dos programas de fidelidade. Ele fará uma viagem para a Austrália dentro de alguns meses e, com os pontos do voo para Louisville, poderá obter um upgrade para a classe executiva. Em voos longos, Michael me diz, a diferença entre executiva e econômica é como o dia e a noite.
O que você prefere – pergunto –, dia ou noite?
Porque eu, habitualmente, sou um tipo da noite, mas também de dia há algo especial, radiante. De noite é mais silencioso e fresco, e isto é uma consideração significativa, ao menos para mim, que vivo em um país quente. Mas de noite, a pessoa pode se sentir mais solitária se não há alguém ao seu lado, se é que você me entende.
Eu não – diz Michael. A voz dele soa pesada.
Não sou gay – eu lhe digo, porque percebo que o deixei tenso. – Sei que toda esta conversa sobre solidão e noite soa como conversa gay, mas eu não sou. Em todos os trinta e tantos anos de minha vida só uma vez beijei um homem na boca, e, assim mesmo, foi meio que por engano. Eu estava no exército, e, na minha unidade, havia outro soldado chamado Tzlil Druker. Ele trouxe maconha para a base militar, e me chamou para fumar. Tzlil me perguntou se eu já tinha fumado alguma vez, e eu disse que sim. Eu não tinha intenção de mentir, mas simplesmente tenho esta característica: quando me perguntam algo e eu fico tenso, sempre digo que sim. Para agradar. É um reflexo que ainda pode me criar um grande problema. Imaginem que um policial entre no quarto, me veja ao lado de um cadáver e pergunte: “Você o matou?” Pode acabar mal. O policial também pode perguntar, suponhamos: “Você é inocente?” Neste caso, eu me saio bem. Mas cá entre nós, qual é a chance de um policial perguntar uma coisa dessa?
Fumamos juntos, Tzlil e eu, e isto foi uma sensação muito especial. A droga simplesmente calou a minha boca. Eu não precisava falar para ser. Enquanto fumávamos, Tzlil me disse que fazia um ano que tinha se separado da namorada. Que fazia um ano que não beijava uma mulher. Lembro que ele usou esta palavra, “mulher”. Eu lhe disse que nunca tinha beijado uma mulher. Ou garota.
Na boca, quis dizer. No rosto, beijei muito. Tias e coisa e tal. E Tzlil me olhou e não disse nada, mas vi que estava surpreso. E então, de repente, nos beijamos. A língua dele era áspera e azeda, como ferrugem no corrimão da passarela. Lembro que na época pensei que todas as línguas e beijos que me aparecessem na vida seriam assim. Que por não ter beijado ninguém até então, na prática não tinha perdido nada.
E Tzlil disse, ‘Não sou homo’.
E eu ri e disse, ‘Mas tem nome de gay’.
E foi isso.
Oito anos depois eu o encontrei, por acaso, numa lanchonete de húmus; quando o chamei de Tzlil, ele disse que não se chamava mais assim, que tinha saído do Ministério do Interior e mudado o nome para Tsachi.
Espero que não tenha sido por minha causa.”
Michael, que está sentado ao meu lado, há tempo já não me ouve. No início pensei que estivesse tenso porque achou que eu queria dar em cima dele. Depois comecei a suspeitar que ele, sim, era gay e que se ofendera com a minha história, que era como se eu dissesse que beijar um homem é nojento. Mas quando eu o olho nos olhos, não vejo ofensa ou ansiedade, simplesmente muitos pontos de milhagem se acumulando para um upgrade, para comissárias mais bonitas, café mais gostoso, mais espaço para as pernas.
Quando vejo isso, sinto-me culpado.
Não é a primeira vez que vejo isso nos olhos de pessoas com as quais eu falo – e não estou falando de mais espaço para as pernas. Estou me referindo a não prestar atenção, ver que a pessoa está pensando em alguma outra coisa. E sempre me sinto culpado. Minha mulher me diz que não tenho por que me sentir assim. Que o fato de eu falar muito é, obviamente, um pedido de ajuda. Que não importa que palavras eu pronuncie, o que realmente digo naquele momento é “socorro”. Pense nisso, ela diz, você grita “socorro” e eles, enquanto isso, pensam em outra coisa. Se há alguém que deva se sentir culpado, são eles, não você.
A língua da minha mulher é macia e agradável. A língua dela é o melhor lugar no mundo. Se fosse um pouco mais larga e comprida, passaria a morar nela. Eu me enrolaria nela como um pedaço de peixe em arroz. Se eu pensar com que língua comecei a beijar e onde cheguei, posso dizer que fiz algo de bom com essa minha vida. Que também passei por um bom upgrade.
A verdade é que jamais voei na classe executiva, mas se a diferença entre ela e a econômica é como a diferença entre a língua da minha mulher e a de Tzahi-Tzlil Druker, estaria disposto a morar uma semana na sucá mais abominável do mundo, com o tio mais chato para receber esse tipo de upgrade.
Anunciam que logo pousaremos. Continuo a falar. Michael continua a não ouvir. O globo terrestre continua a girar em seu eixo. Mais quatro dias, querida. Daqui a quatro dias voltarei para você. Daqui a quatro dias poderei novamente ficar calado.

Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta

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