Anos depois do acidente que emudeceu uma
de suas filhas, meu pai, incentivado por Sutério, havia convidado o
irmão de minha mãe para residir em Água Negra. O gerente queria
trazer gente que “trabalhe muito” e “que não tenha medo de
trabalho”, nas palavras de meu pai, “para dar seu suor na
plantação”. Podia construir casa de barro, nada de alvenaria,
nada que demarcasse o tempo de presença das famílias na terra.
Podia colocar roça pequena para ter abóbora, feijão, quiabo, nada
que desviasse da necessidade de trabalhar para o dono da fazenda,
afinal, era para isso que se permitia a morada. Podia trazer mulher e
filhos, melhor assim, porque quando eles crescessem substituiriam os
mais velhos. Seria gente de estima, conhecida, afilhados do
fazendeiro. Dinheiro não tinha, mas tinha comida no prato. Poderia
ficar naquelas paragens, sossegado, sem ser importunado, bastava
obedecer às ordens que lhe eram dadas. Vi meu pai dizer para meu tio
que no tempo de seus avós era pior, não podia ter roça, não havia
casa, todos se amontoavam no mesmo espaço, no mesmo barracão.
Para convencê-lo, meu pai disse que o
arrozal era bom de trabalhar. Que ali chovia, tinha terra boa, que,
“olha”, abria os braços mostrando a roça e o quintal, mostrando
a mata ao redor deles, “aqui não nos falta nada”. “Você tem
os meninos, isso é de ajuda. Tem um passarinho preto miudinho
assim”, mostrava as falanges dos dedos dando a dimensão aproximada
da praga, “que ataca o arrozal de manhã cedo. Os meninos podem
ajudar a espantar eles. Aqui todo mundo acorda cedo para espantar os
passarinhos, só assim fazemos boa colheita”.
Era verdade. Nos longos anos em que
plantaram arroz no meio do sertão de água, na beira dos pântanos
dos marimbus, acordávamos antes que o sol se levantasse no horizonte
e seguíamos rumo à roça da fazenda. Nos muníamos de galhos,
pedras, tudo que fosse instrumento para espantar os pássaros,
miudinhos, de penas negras e que brilhavam quase azuis na luz da
manhã. Se não fôssemos rápidos o suficiente, seu bico entrava no
grão que amadurecia e sugava tudo que estivesse dentro, com sua
minúscula língua. Enquanto os adultos trabalhavam, cabia a nós, as
crianças, espantar a praga. Os meninos chegavam com estilingues, por
vezes abatiam a ave pequena. Certa vez, Belonísia chorou e só
cessou o pranto quando sugeri que fizéssemos um enterro, com direito
a uma caixa de vela, como urna, e flores que colhemos no campo.
Meu tio viajou no lombo de um burro, a
mulher em outro, os filhos caminhando, se revezando na travessia para
a montaria dos animais. Foram morar numa construção de alvenaria,
uma casa vazia que abrigava os trabalhadores que chegavam. Era
permitido que se hospedassem ali até a aceitação definitiva da
morada, dada de acordo com a produtividade e a disposição para o
trabalho da nova família. Se aceitos, destinava-se a eles uma
parcela de terra para que pudessem construir a tão almejada casa e
ter seu quintal e animais pequenos.
Tio Servó chegou acompanhado da esposa,
Hermelina, e dos seis filhos. Era a primeira vez que os via. Minha
mãe estava emocionada, com a discrição de sentimentos que lhe era
peculiar. Matou duas galinhas de nosso quintal e fez um almoço
farto. Sentamos no chão com nossos pratos, as crianças tímidas se
escondiam atrás dos pais. Salu não conhecia a cunhada e logo quis
saber os nomes dos sobrinhos. “Esse aqui guardei pra você batizar,
Salu”, disse. Era meu primo mais velho, Severo. Era quase um rapaz,
crescido, mas igualmente tímido como os irmãos. “Mas deixou o
menino tanto tempo pagão, Servó?”, reclamou minha mãe da
negligência do irmão.
Depois do almoço, e espalhados pelo
terreiro, meus primos foram se entrosando. A casa onde iriam ficar
estava mais próxima do rio Santo Antônio, do lado oposto à nossa
casa. Assim, nosso contato não seria tão frequente, nos veríamos
nas festas e feriados, ou nos dias das brincadeiras do jarê em nossa
casa. Não cheguei a vê-los nos arrozais da várzea do Santo
Antônio, para saber se espantavam o chupim tão bem como nós. Mas
Severo, o primo tímido, chegava de tempos em tempos com meus tios
para nos visitar. Se era brincadeira de jarê, ficávamos acordados
até a madrugada correndo pelo terreiro, contando histórias e rindo
alto.
Eu e Belonísia, estranhamente, já que
estávamos cada vez mais próximas, nos dispersávamos nesses
momentos, talvez de forma irrefletida, para disputar a atenção de
Severo. Domingas e Zezé se ocupavam em brincadeiras com os menores,
enquanto nós, quase adolescentes, descobríamos aos poucos o
interesse que um menino poderia despertar em duas moças com seios
despontando nos vestidos, ancas se firmando e o perfume do corpo
abundando como nunca. Duas moças que se descobriam vaidosas, que
reclamavam por um espelho em casa, que ocupavam o tempo vago com
penteados e combinações de vestimentas diferentes com as poucas
peças de roupa que tinham.
Severo superou aos poucos a timidez e
passou a se comunicar de forma incessante conosco. No início, a que
era a voz duplicada, a que falava pelas duas, cuidou, sem perceber,
de instruir o primo de como poderia ser fácil entender os sinais que
havíamos elaborado, sem o recurso de uma escola, para nos
comunicarmos. De maneira breve, ele aprendeu a se comunicar também,
às vezes melhor que qualquer um da casa, e logo se passou a sentir,
além do óbvio ciúme pela atenção do primo, ciúme pela
capacidade de compreensão que havia adquirido em tão pouco tempo.
Quiçá o primo nos compreendesse melhor que nossos pais.
Chupim aos montes e todo dia, ao
alvorecer. Nós seguíamos para espantá-los com nossas armas. Chupim
engana, é matreiro e preguiçoso. Come o arroz que a gente planta –
ouvíamos falar –, gosta de coisa pronta. Não batalha pelo seu
grão. Chupim nos marimbus podia colocar ovos no ninho de xanã, no
do sangue-de-boi de penugem vermelha cor de fogo, cantando “tiê,
tiê” para os ovos dos filhotes que pensa serem seus. Chupim coloca
ovos no ninho de carrega-madeira que esteve construindo sua casa para
abrigar sua cria – e as crias do parasita sem saber. Deixava seus
ovos fecundados para serem chocados nos ninhos de xorró-d’água,
cabeça-de-velho, sabiá-bosteira, sabiá-bico-de-osso, bem-te-vi,
patu-d’água e guachu. Os ovos do chupim cresciam debaixo da beleza
do canto do sofrê e até de zabelê no chão. Mas nunca vi ovo de
chupim no ninho de paturi. Por que será? É o que guardo das
conversas que tínhamos quando nos encontrávamos em nossa casa,
quando muito, na casa da família de tio Servó, no sequeiro do rio
Santo Antônio. Com a chegada do tio, ganhamos um tocador de pífaro
para alegrar as festas de santos, porque a festas dos encantados eram
dominadas pelos atabaques. Por muitos anos, a música do pífaro de
nosso tio dominou nossas celebrações e as mais distantes, quando
viajávamos para festejar São Francisco e outros santos de nossa
estima nos povoados de Remanso e Pau-de-Colher. No dia de São
Sebastião, santo de devoção de nosso pai e celebrado na sua data
de nascimento, havia a maior festa, a que mais agregava gente e a que
mais trazia devotos de fora da fazenda. Muitos vinham de longe para
seguir os rituais da brincadeira para festejar com bebidas e comidas
as dádivas que haviam recebido dos encantados. Nós, crianças,
permanecíamos distantes das atividades principais, os mais novos em
brincadeiras ao redor da casa; os mais jovens disputando a atenção
dos adultos. Eu e Belonísia ouvíamos a conversa das filhas de dona
Carmeniuza e dona Tonha. Elas falavam da visita dos patrões às
roças da fazenda. Queriam saber se eles haviam chegado por aqui, se
tinham levado as batatas do nosso quintal também. “Mas as batatas
do nosso quintal não são deles”, alguém dizia, “eles plantam
arroz e cana. Levam batatas, levam feijão e abóbora. Até folhas
pra chá levam. E se as batatas colhidas estiverem pequenas fazem a
gente cavoucar a terra para levar as maiores” – disse Santa,
arregalando os olhos para mostrar sua revolta. “Que usura! Eles já
ficam com o dinheiro da colheita do arroz e da cana.” Poderiam
muito bem comprar batata e feijão no armazém ou na feira da cidade.
Nós é que não conseguíamos comprar nada, a não ser quando
vendíamos a massa do buriti e o azeite de dendê, escapulindo dos
limites da fazenda sem chamar a atenção. “Mas a terra é deles. A
gente que não dê que nos mandam embora. Cospem e mandam a gente
sumir antes de secar o cuspo” – alguém disse, num sentimento de
deboche e indignação. Severo nos observava de longe, riscando um
graveto no barro seco.
Quando já era madrugada minha mãe
perguntou se havia visto Belonísia e Domingas. Domingas estava
brincando com a filha de Jandira, na lateral da casa. Belonísia eu
havia perdido de vista. “O povo está indo embora”, disse minha
mãe. Pediu que levasse minha irmã para a cama. Não obedeci logo,
deixei Domingas num canto, parecia não ter sono àquela altura,
quando dei uma volta ao redor da casa procurando por Belonísia. Não
muito distante, debaixo do umbuzeiro quase seco, vi uma sombra que se
distinguia do resto da escuridão da noite. Era uma noite fresca e
parte das pessoas que iam embora estavam agasalhadas para caminhar
para suas casas. Outros abraçavam o próprio corpo, tentando se
aquecer. Me aproximei devagar da árvore onde se abrigava a sombra e,
antes que chegasse mais perto, a vi se dividir. Belonísia deixou o
abrigo como se nada tivesse acontecido. Passou por mim de cabeça
erguida e sorrindo. Antes que eu me aproximasse mais, Severo também
deixou o umbuzeiro e seguiu em direção aos pais que estavam prontos
para caminhar até sua casa com o candeeiro que tremulava a luz ao
longe nas mãos.
Sem conseguir dormir o resto da noite,
nem olhar para minha irmã, fui tomada por um sentimento de decepção
e rivalidade que desconhecia até aquele instante.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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