quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Dona Sophia

          O foguetório vinha lá das bandas do rio Grande. Ninguém ouviu. Só ela, a dona Sophia. Ninguém ouviu porque quase não se ouvia, de tão longe. Ela ouviu porque desde muito cedo pusera atenção nos seus ouvidos. Fora ela que contratara o fogueteiro com ordens expressas de não economizar. Por isso, porque seus ouvidos estavam à espera, ela foi a única a ouvir. Mas logo todos ouviriam. Ela sorriu de felicidade.
Naqueles tempos os fogueteiros eram profissionais importantes. Eram listados nos almanaques ao lado dos notáveis da cidade. Sua importância se deve ao fato de serem arautos.
A importância dos arautos vem de longa data. Os reis se valiam deles para informar o povo de suas decisões. Tocavam-se os clarins na praça da vila e todo mundo corria: havia novidades. Os arautos das novidades nas cidadezinhas de Minas eram de três tipos. Primeiro havia os arautos vindos de lugares distantes conduzindo tropas de burros carregados com mercadorias das cidades grandes. Eram os mascates sírios e libaneses. O povo os chamava de “turcos”, o que os deixava muito bravos. Onde já se viu confundir sírios e libaneses com turcos? O povo não sabe geografia? Sobre eles falaremos mais tarde por haver suspeitas de que eu tenha sangue sírio-libanês correndo nas minhas veias. Depois vinham os arautos do lugar. Os primeiros eram os sineiros, geralmente um sacristão ou coroinha, que puxava a corda e fazia os sinos tocarem, à semelhança do corcunda de Notre Dame. Tocar os sinos era uma arte. Isso porque havia coisas alegres e coisas tristes a serem anunciadas. Por isso os toques tinham de ser diferentes. Havia toques alegres e toques fúnebres. Todo mundo conhecia a diferença. Quando se tratava de coisas alegres os sineiros não poupavam os sinos. Era uma farra. Um exemplo clássico dessa função alegre dos sinos se encontra ao final da Abertura 1912, de Tchaikovski, que foi composta para celebrar a vitória dos exércitos russos sobre as tropas de Napoleão. A Abertura termina com uma explosão triunfal de tiros de artilharia e o repicar descontrolado, bêbado, dos carrilhões. Nas cidades pequenas não havia eventos portentosos assim para serem celebrados, mas havia as missas, os casamentos, os batizados.
Mas os mesmos sinos se prestavam também para anunciar a morte. Aí o seu repicar ficava triste, vagaroso, lúgubre, choroso. Quando o toque fúnebre era ouvido todos se persignavam e perguntavam: “Quem terá morrido?”. Meu pai, já velho, já estando remando no grande rio, voltou ao mundo da sua infância. Acho que a “terceira margem do rio” é a infância... Abriu um guarda-roupa e pôs-se a procurar alguma coisa. Perguntei: “O que é que o senhor está procurando, papai?”. Eu sempre o tratei por “senhor”. Ele me olhou com olhos enormes, olhos de um outro mundo e respondeu: “Procuro meu terno preto”. Mas não havia razões para um terno preto nem ele tinha terno preto. “Mas para que o senhor quer vestir um terno preto?”, perguntei. Ele me olhou e disse: “Você não está ouvindo o repicar fúnebre dos sinos?”. Estremeci. Não havia sinos repicando. Os sinos fúnebres repicavam dentro da alma dele. A alma sabia que a hora estava chegando.
Mas os fogueteiros eram arautos só de alegria. Foguete estourou, coisa feliz estava acontecendo. Fogueteiro não era chamado para anunciar velório. Só pra anunciar a felicidade. Quem ganhava na loteria chamava o fogueteiro. Quando o time do lugar ganhava, mais foguetório. Meu pai uma vez contratou um foguetório para celebrar ter ganho uma demanda com a prefeitura. Ele havia sido multado por excesso de velocidade. Isso em 1925, numa cidade que só tinha ruas de terra...
Pois fora a dona Sophia que encomendara o foguetório. Para celebrar. Para anunciar para a cidade inteira que o seu sonho estava se realizando.

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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