E se Vargas, ao final da reunião do
ministério na madrugada daquele 24 de agosto de 1954, pegasse o
elevador para o segundo andar do Catete e mesmo tresnoitado, mesmo
trespassado pela insuportável pressão dos militares para que
largasse o osso, e se Getúlio deixasse o bode preto no grande salão
do térreo, abrisse a porta do quarto querendo de energia apenas o
suficiente para correr até a gaveta do criado-mudo e puxar de lá o
épico do tiro libertador, e se Getúlio Vargas, ao abrir a porta do
quarto que julgava o cômodo final de sua trajetória nesta Terra
injusta, antes de meter a mão no Colt americano, calibre 32, de 504
gramas, tambor de seis tiros, e se ele encontrasse sobre a cama já
estendida, tão transparente e macia, a camisola do dia servindo de
invólucro à apresentadora do espetáculo To-ne-lux, e se, cinquenta
anos depois eis agora a pergunta que não se calou porque jamais
feita, e se naquele quarto para o qual Getúlio correu em desespero,
certo de que só lhe restava um tirambaço para deixar a vida e
entrar na História – e se ali estivesse seu cacho, minha uva, sua
amante e nosso avião, a vedete do Brasil Virgínia Lane?
Por menos que eu conheça o que vai no
peito dos presidentes, sei que os corações dos homens batem todos
iguais e eu tenho certeza que bastaria ela, Virgínia Lane, nada além
que essa ilusão, minha criança esperança, bastava aquele metro e
meio da estrela de “É fogo na pipoca”, o espetáculo de Max
Nunes que ela ensaiava para estrear no Carlos Gomes, na Tiradentes.
Bastava o sorriso de coelhinha dentuça,
esparramando pelo quarto a correta hierarquia dos valores de uma
vida, o corpo da mulher sempre em primeiro plano, para que Getúlio
deixasse de bobagem, meu nego, desse o peso exato ao manifesto que
Zenóbio da Costa redigia aos militares e deixasse de puxar angústia,
meu benzinho, viesse pro quentinho, fofinho, e pronto, não haveria
esse estampido zunindo eternamente em nossas tragédias. Não se
falaria mais nisso. Não se fretaria o avião-coche-fúnebre para São
Borja.
E hoje não só não haveria aquele
pijama manchado de sangue assustando as meninas na vitrine do Museu,
como os bêbados do Bar do Getúlio logo em frente não ilustrariam
seu delirium tremens com a alucinação de estarem ouvindo repetidas
vezes, ecoando o quinado, o tiro terminal que ainda assombra o país
de culpas e enche a soleira de nossas portas com cadernos especiais
sobre as consequências da falta que ele nos faz, da falta que fez
sobre a cama da História a delícia fundamental de um metro e meio
de estupor rechonchudo embrulhado no edredom vermelho e na luz difusa
do abajur lilás.
Eu sei que esse mote é interminável e
pode ocorrer a todos o medo de se virar a página e vir aí um outro
texto especulativo do tipo e se o vento soprasse na hora do chute de
Gighia, e se Tancredo recusasse a feijoada na véspera, e se Jânio
não pedisse outra dose de Ron Merino no Dia do Soldado. Eu sei que
não existe a cadeira História Especulativa e que a História se
conjuga com fatos, não com hipóteses que passam pelo teatro
rebolado da Tiradentes. Mas, é um gosto amargo de jiló verdinho, é
uma pena que Virgínia Lane não estivesse lã, desse uma chave de
pernas cívica em mais um capítulo da tristeza brasileira.
Quando Getúlio, levado o pé na bunda
dos militares, fosse deixado na porta do quarto pela filha Alzirinha
e pelo major ajudante-de-ordens Ernani Fittipaldi, a vedete gritaria
da cama a saudação de “surpraise, meu baixinho”, ligaria o
rádio de válvulas no momento em que estivesse tocando o sucesso da
temporada, o pré-rock “bru... rrum mas que nervoso estou/ bru...
rrum sou neurastênico/ bru... rrum preciso me tratar/ senão eu vou
pra Jacarepaguá” e, depois de dizerem que aquela era a música
perfeita para o Lacerda, os dois cairiam na gargalhada e
recomeçariam, do ponto exato em que tinham parado semana passada, a
encenação do bububu no bobobó, o desfile do sambalelê tá doente,
o carro alegórico do Biotônico Fontoura, o bigorrilho de prata, o
violino chinês, o candelabro italiano, a ponte do rio Kwai e alguma
outra novidade da cornucópia amorosa em que, segundo Virgínia, o
gaúcho era presidente, líder inconteste das massas,
traaaaaabalhador do Brasil e infatigável praticante.
Um chorrilho de malabarismos eróticos
não seria suficiente para esconder Gregório Fortunato embaixo de
qualquer cama da Toneleros, não demoveria em nada os militares de
antecipar para agosto de 54 o março de 64, mas já que a ordem
democrática tinha sido mandada às favas, que se vibrasse a vida com
a desordem amorosa, tudo o mais fosse pro inferno, e os
acontecimentos da madrugada funesta seriam colocados em sua devida
proporção, um capítulo de sempre da República do Galeão, ali,
logo ali ao sul, pleno continente de Kubanacan.
Se na madrugada de 24 de agosto Getúlio
Vargas deixasse o mesão em que lhe estenderam a carta de renúncia e
encontrasse, surpraise, Virgínia Lane sassaricando ao frio
ateu do Catete, as coisas andariam do mesmo jeito esquisito que estão
hoje, talvez com menos bustos e memoriais nas praças do Rio, talvez
com um problema extra na hora de se dar nome às grandes avenidas do
país, mas uma noite de amor maluco entre o presidente e a vedete
relaxaria a memória nacional da convivência com o bode preto de um
tiro no peito, deixaria menos sobressaltados os pesadelos da pátria
e bem mais limpinho, com alguma outra gota de vida no lugar daquela
de sangue, o pijama listrado da História.
Joaquim Ferreira dos Santos, in Em busca do borogodó perdido
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