sábado, 16 de janeiro de 2021

Serra da Canastra

 


Ouvi falar pela primeira vez da Serra da Canastra no segundo ano do grupo (hoje, do ensino fundamental). O programa dizia que a meninada tinha de saber de cor uma lista de nomes de serras e rios, só os nomes mesmo, sem nenhuma informação sobre os espantos que aqueles nomes escondiam. A professora nem se dava ao trabalho de mostrar os lugares no mapa. O Manolito, da Mafalda, aquele menino burro, cabelo escovinha, que só pensava no armazém do pai dele, se rebelava contra essa exigência antipedagógica e argumentava: “De que me adianta saber se o Himalaia é navegável ou não?”. A professora disse que era na Serra da Canastra que nascia o rio São Francisco. E ficou por aí, por muitos e muitos anos, o meu conhecimento da Serra da Canastra. Até que lá fui uma vez, via Araxá, estrada de terra ruim, esburacada, que a chuva transformara em barro e atoleiros. Mas valeu a pena. Nunca respirei ar tão perfumado e puro. Vi um bando de mais de cinquenta canarinhos-da-terra também chamados “cabecinhas de fogo”. Foi a primeira vez que caminhei pelo cerrado, essa coisa maravilhosa que os homens progressistas destroem para plantar cana. A cada passo, as flores me assombravam. E, por falar nas flores do cerrado, é preciso mencionar o livro do Carlos Rodrigues Brandão O jardim da vida, com aquarelas das flores pela artista Evandra Rocha. O Brandão se deu ao trabalho de procurar, para cada planta e flor, referências literárias em que aparecem citadas. E as cachoeiras, centenas, caindo das alturas e formando piscinas de água gelada e transparente! A cada mergulho o corpo rejuvenesce e a alma ri. Faz umas semanas, entrei na Serra da Canastra por um outro caminho, via Passos, atravessando o rio Grande no porto do Glória. Fiquei na pousada Vale do Céu, dos amigos Cláudio, Cristina e seu filho Leo. Eles se apaixonaram pelo lugar. Mas a pousada é desculpa para uma coisa muito maior que estão fazendo, cuidando da natureza, dos riachos, das matas, de maneira amorosa e científica. E até contrataram biólogos para mapear as espécies vegetais da região. É difícil lutar contra centenas de anos de hábitos de devastação. E até o Monteiro Lobato caiu nessa e louvou o Jeca Tatuzinho que, depois de tomar Biotônico Fontoura, agarrou um machado e se pôs a derrubar tudo quanto era árvore que via. A comida era servida no fogão de lenha. Como o fogo é bonito! Quando o corpo se assenta diante do fogão de lenha aceso, o rosto fica vermelho pela cor das chamas e a alma descansa. A tranquilidade é tanta que as pessoas param a conversa e se entregam ao gozo de olho e pele.

Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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