quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Qual era o nome dela mesmo?

          Dona Quitéria, com suor a lhe manchar as vestes, mexia lentamente o doce que estava preparando no velho tacho de cobre. A mulher, gorda e retaca, exibia uma cara simpática de sorriso fácil.
As mãos de dedos curtos eram hábeis na arte de preparar alimentos. Ninguém por aquelas bandas era mais requisitado para ajudar nos festejos de casamento, nos aniversários, nas surpresas ou nas marcações festivas.
Escutou barulhos na mangueira. Pisadas de cavalo no chão duro dos palanques. Tentava adivinhar qual dos seus estava chegando. Os passos pararam na porta da casita humilde. O dono deles bateu com as botas no chão, para que caísse o barro e o pasto preso aos tacos das botas. Quitéria soube que era seu marido quem chegava.
Como le vá, minha prenda? — perguntou Índio Feio, com a voz grave e baixa, como se brotasse direto do peito e não da garganta.
Gorda, linda e sã de lombo. Sentes o cheiro?
Mas claro! Ainda não fiz meu banho... Arriá!
O riso alto e franco da esposa fazia com que a face sisuda do marido parecesse mais leve. Surgiu um risco de sorriso naquela cara sempre sóbria. O homem tirou a bandana da cabeça, revelando os cabelos negros e lisos, e a cara com poucos fios de barba, nada mais que uma penugem. Ninguém arriscaria adivinhar sua idade.
Não entendi a piada, mulher!
O riso é porque perguntei do cheiro do doce. Mas vai lá preparar teu banho, tem água na pipa, ali nos fundos.
O homem encheu a gamela, atirou as roupas no canto da sala e entrou no banho, sentindo, com prazer, o frescor da água salobra. Dona Quitéria admirava o marido enquanto seguia seu trabalho. Lembrava como se fosse ontem, quando o domador passara pela estância onde ela ajudava na cozinha. Diziam que ele andava por aquelas bandas fugido, teria matado uns dois ou três lá pelos campos das tais Missões. Nunca perguntou, não importava. Quando ele entregara a tropilha, ela se foi embora junto, na garupa de seu cavalo.
Escutou, ao longe, o assobio do filho que desencilhava o potro. Logo, Antônio estava por ali:
Buenas, mãe... Pai...
Que passou que vem pra casa assobiando? — indagou a mãe com olhos perscrutadores.
Nada. — respondeu Antônio.
Tira as botas, busca a vassoura no galpão e me limpa essa sujeirada que fizesse. Já limpei a casa hoje!
Está certo, mãe. Pai, o senhor viu que o colorado do velho Amâncio tá com sangue no mandrilho? Não tá com bicheira?
O homem abriu lentamente os olhos e perguntou, sério:
Se viu sangue, por que já não examinou se tinha bicheira?
Querendo, vejo agora, pai.
Não precisa. Já vi e já benzi. Amanhã a ferida tá seca e os bichos terão caído. Não tinha muitos — encarou o filho . — Dá próxima vez vai direto ver se tem bicho. Não pode facilitar, meu filho. E o bragado? Tá pronto?
Conversaram até a lua estar postada bem alta no céu. Antônio estava distraído. Não conseguia espantar da cabeça a menina do arroio.
Qual era o nome dela mesmo?
Esquecera de perguntar.

R. Tavares, in Andarilhos

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