quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Pauzuzé

          Paulo José é o nome dele, muito embora tenha se tornado Pajé desde sempre. Meu irmão é oito anos mais velho do que eu. Mesmo assim, quando eu era criança, frequentemente queixava-me dele para a minha mãe, sobretudo em virtude de ataques de cócegas que ele impingia contra mim. Nessas horas eu dizia “Mãããe, manda o Pauzuzé paraaaar”, pois a voz chorosa de filha mais nova não me permitia pronunciar Paulo José de forma mais inteligível do que isso.
Meu irmão mede 1,83m. Acho que ele atingiu essa altura quando tinha uns 16 anos. Eu tinha 8 e, naquela época, nada na vida era mais legal do que dizer que meu irmão media 1,83m. Dizia isso para todo mundo, como quem noticiava algo realmente imperdível.
Lembro-me da primeira vez que percebi que, um dia, meu irmão poderia não viver mais comigo. Foi quando eu estava assistindo a televisão e vi uma propaganda do alistamento militar. Corri até meu pai e perguntei se era verdade. Se o Pauzuzé teria que fazer aquilo. Ele disse que sim, mas tentou me acalmar, afirmando que normalmente eles escolhiam meninos diferentes do meu irmão para serem soldados. Voltei para o sofá com um choro engasgado, lágrimas começando a escorrer e um verdadeiro pânico de pensar na ideia de ele estar com uma arma em vez de estar comigo.
Houve uma época, quando eu tinha uns 9 anos, em que ele me convidava para ir até o quarto dele depois do jantar para me explicar coisas. Ele me explicou o que era inflação. O que era a força da gravidade. Quem era cada um dos Beatles. O que era direita e esquerda. Como se contava até dez em japonês. Se àquela altura eu soubesse o que era ser Ph.D. na Universidade de Londres, não teria dúvida nenhuma de que o Pajé um dia o seria – como hoje, de fato, o é.
Meu irmão saiu de casa aos 17 anos para fazer faculdade no interior. Lembro-me de não querer entender muito o que estava acontecendo. Fingi não perceber todo aquele movimento. As malas, a matrícula na faculdade, as visitas à república na qual ele iria morar. Fiz vista grossa, desconsiderei e nem chorei. Talvez eu deva trabalhar isso na terapia. Acho que nunca ajeitei essa história dentro do peito, principalmente porque depois daquele fatídico ano de 1997 eu nunca mais tive a chance de ficar ao lado dele sem estar numa contagem regressiva.
Acredito que meu irmão seja a única pessoa que eu endeusei ao longo da vida. Não admirei tanto nem meus pais, nem o Papa, nem a Britney Spears nos seus tempos áureos. Sempre tive a sensação de que meu irmão era uma criatura intangível, muito diferente das demais. Minha irmã sempre foi terrena, sempre olhei para ela da mesma forma como olho para mim mesma. Mas com ele sempre foi – e ainda é – diferente. Talvez um semideus, uma divindade. Não sei explicar muito bem.
Nunca questionei a capacidade do Paulo José para nada. Tinha certeza de que ele era bom em tudo. E se ele ficava em recuperação em matemática todo ano na escola, era porque a matemática era uma porcaria, não ele. Acho que fui a única pessoa que não se preocupou quando meu irmão anunciou que seria pai aos 23 anos. Para mim era óbvio que ele seria um pai irretocável. Nunca me preocupei com a minha sobrinha, nem de longe, e hoje ela é mesmo incrível. Eu estava certa.
Pauzuzé é uma espécie de sina para mim. Até hoje sinto que preciso provar para ele que sou boa o bastante. Até hoje sinto necessidade de fazer com que ele se orgulhe de mim, embora ele nunca me cobre nada disso. Sei traduzir facilmente meu amor pelo meu pai, pela minha mãe, pela minha irmã. Mas meu amor pelo Pajé é diferente de todos os outros. Talvez porque eu sinta que não o tive pelo tempo que queria ter. Talvez porque eu tenha sede do meu irmão até hoje. Ou talvez porque ele, de fato, seja diferente de todas as outras pessoas do mundo.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

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