terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Josef

          Há conversas que são capazes de modificar a vida de alguém. Tenho certeza disto. Quer dizer, quero acreditar. Sento num café com um produtor. Ele não é bem um produtor, jamais produziu alguma coisa, mas quer produzir. Tem uma ideia para um filme e quer que eu escreva o roteiro. Explico-lhe que não escrevo para cinema e ele aceita isso e chama a garçonete. Estou certo de que vai pedir a conta, mas ele pede mais um expresso. A garçonete me pergunta se também quero mais alguma coisa, e eu peço um copo de água. O que quer ser produtor se chama Yossef, mas se apresenta como Josef. “Ninguém”, diz ele, “é de fato chamado de Yossef. Sempre é Sefi ou Yossi ou Yos, então adotei Josef.” Ele é perspicaz, esse Josef. Capta o que digo em um segundo, “Você está ocupado, não é?” diz, me vendo olhar o relógio, e logo acrescenta, “muito ocupado. Viaja, trabalha, escreve e-mails.” Não há nenhuma maldade ou ironia no modo com que diz isso. É uma espécie de constatação de fatos, no máximo uma expressão de simpatia. Aceno com a cabeça. “Você tem medo de não estar ocupado?”, pergunta. Aceno novamente. “Eu também”, ele diz e sorri com os dentes amarelados. “Porque deve haver algo lá embaixo. Algo ameaçador. Não fosse assim, não trituraríamos o nosso tempo em fragmentos tão pequenos para toda espécie de projetos. E você sabe do que é que tenho mais medo?”, pergunta. Eu hesito um instante, penso o que responder, mas Josef já continua. “De mim, do que eu sou. Você conhece esse nada que preenche você um instante depois que goza? Não com alguém que você ama, com qualquer uma. Ou quando você bate uma. Conhece isto? Disto, eu tenho medo, de espiar dentro de mim e não encontrar nada. Não simplesmente um nada padronizado. Um nada angustiante, não sei exatamente que nome dar a isso...”
Agora ele fica calado. Sinto-me desconfortável com esse silêncio. Se fôssemos mais próximos, talvez eu pudesse ficar calado junto com ele. Mas não no nosso primeiro encontro. Não depois de uma frase assim. “Por vezes”, tento responder sinceramente, “a vida me parece uma armadilha. Algo em que você entra sem suspeitar, e ela se fecha sobre você. E quando você está dentro, dentro da vida, quero dizer, então não há para onde fugir, exceto talvez se suicidar, que também não é exatamente uma fuga, é mais uma desistência. Sabe a que me refiro?”
É foda”, diz Josef, “é simplesmente foda você não escrever o roteiro.” Há algo muito estranho no modo como ele fala. Até xingar ele não xinga como outras pessoas. Não sei o que dizer depois disso, então fico calado. “Não tem importância”, ele diz um instante depois, “o fato de você ter dito ‘não’, só me dará uma chance de encontrar outras pessoas, tomar mais café. Porque esta é a melhor parte em todo esse negócio. Produzir mesmo não parece ser exatamente para mim.” Pelo visto, devo ter concordado, porque ele reagiu. “Você acha que eu não dou para isto, não é? Que eu não sou de fato um produtor, que sou apenas alguém com um pouco de dinheiro da família e que fala bastante.” Aparentemente continuo a concordar, não de forma intencional, devido à pressão, porque agora ele ri. “Você tem razão”, diz, “ou talvez não e eu ainda venha a surpreender você. E a mim mesmo.” Josef pede a conta e insiste em pagar. “O que acha da nossa garçonete?”, pergunta enquanto esperamos que passem o cartão de crédito. “Você acha que ela também está tentando fugir? De si mesma, quero dizer.” Dou de ombros. “E aquele cara que acabou de entrar, de casaco? Veja como está suando. Provavelmente está fugindo de alguma coisa. Quem sabe devamos formar uma start-up? Em vez de um filme, façamos um programa que identifique pessoas que fogem de si mesmas, que têm medo do que descobrirão. Pode ser um sucesso.” Olho para o sujeito que está suando de casaco. É a primeira vez na vida que vejo um terrorista suicida. Depois, no hospital, repórteres de redes estrangeiras pedirão que eu o descreva e direi que não me lembro. Porque me parecerá algo pessoal, algo entre nós dois. Josef também sobreviverá à explosão. A garçonete, não. Isto não depõe contra ela. Em atentados assim, o caráter não é um fator. Tudo, afinal, é uma questão de ângulo e distância. “Este que acabou de entrar está com certeza fugindo de algo”, Josef dá uma risadinha e vasculha os bolsos em busca de moedas para a gorjeta. “Talvez ele concorde em escrever o filme para mim ou ao menos se encontrar em algum café.” Nossa garçonete, cardápio plastificado na mão, se aproxima, saltitante, do sujeito suado de casaco.

Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta

Nenhum comentário:

Postar um comentário