sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Honra

           O analista de Bagé se declara “freudiano de cola decalco” e “mais ortodoxo que Caximir Buquê”, mas isto não o impede de experimentar com novas formas de terapia. Como no caso da mulher do compadre Salustiano.
Contam que um dia o compadre Salustiano entrou no consultório, segundo o analista de Bagé, como mata-mosquito em convento. Causando alvoroço. Eles há tempo não se viam.
Guasca velho!
Índio bem loco!
Seu bosta!
Animal!
Desgraçado!
E se atiraram um nos braços do outro, com tanta força que a Lindaura veio ver se não tinha móvel quebrado. Depois o analista de Bagé mandou o amigo se deitar no divã e desembuchar, que era de graça. O Salustiano reagiu.
Epa. Tá me estranhando, compadre? O problema é com a Rosa Flor.
O que tem?
A Rosa Flor quer ir pro Rio.
Ir embora do Rio Grande? Mas enlouqueceu.
Pois é. Diz que não aguenta mais vê campo. Quer ver o mar.
Mas ela não sabe que mar é igual a campo, com a desvantagem que afunda?
Sabe, mas não adianta. Aquela, quando decide ir pra um lugar, é como cachorro de cego. Só matando.
Escuta aqui, tchê. Tu deste um trancaço nela?
Dei trancaço, dei laço, cheguei até a pedi. Foi como mijá em incêndio.
Cosa, seu. Tu sabe que mulher que vai pro Rio já desce na rodoviária falada.
E não sei?
Me manda ela aqui.
A Rosa Flor, a princípio, não quis dizer nada. Ia para o Rio e pronto. O analista de Bagé abriu um volume do Freud para consulta. Era ali que guardava, numa folha de caderno de armazém, escritas a toco de lápis, as máximas do velho Adão, seu pai. Encontrou um precedente: “Pra amarrar cavalo no campo e mulher em casa, só carece de um pau firme.” Deitada no pelego, a Rosa Flor confirmou com a cabeça quando o analista perguntou, sutilmente, se o compadre não passava mais a linguiça na farinheira. Era verdade.
O analista botou uma mão na cabeça. Aquilo era a pior coisa que pode acontecer com um gaúcho, fora cair do cavalo ou a filha casar com nordestino.
Com a outra mão, começou a desabotoar a braguilha. Fazia qualquer coisa por um amigo.
Ficou combinado que a Rosa Flor teria sessões duas vezes por semana e desistiria daquela história de ir para o Rio, o compadre Salustiano podia ficar descansado. A honra da Rosa Flor estava salva.

Luís Fernando Veríssimo, in O analista de Bagé

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