sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Agora é a má hora!

          Aquilo não ia ter pique de ponto, guerra que não se sabe terminar? Assunto que apostaram os mil tiros para cima de nossa redondez de lugar, esses assoviaços. Triplavam. No ferrenho, tive um tempo de coisa, espécie de mais medo, o que um não confessa: vara verde, ver. Mas, morresse, eu descansava. Descansava de todo desânimo. Andando que aquele ataque nosso não servia para resultado nenhum, e eu carecia de avistar os outros, saber de qualquer contagem de balanço, de quantos tinham morrido ou estavam mal. Eu queria saber, dos deles e dos nossos. Combate sem cabimento! Só o tiroteio, repetido reproduzido. Meio peguei um pensamento: se o Hermógenes sungasse raiva, se o Ele desse nele, por um vir? Que mandasse avançasse, a fino de faca, nós todos tínhamos de avançar? Então, eu estava ali era feito um escravo de morte, sem querer meu, no puto de homem, no danadório! E eu não podia virar só o corpo um pouco, abocar minha arma nele Hermógenes, desfechar? Podia não, logo senti. Tem um ponto de marca, que dele não se pode mais voltar para trás. Tudo tinha me torcido para um rumo só, minha coragem regulada somente para diante, somente para diante; e o Hermógenes estava deitado ali, em mim encostado ― era feito fosse eu mesmo. Ah, e toda hora ele estava, sempre estava. Que me disse! ― Tatarana, toma, come, e agradece ao corpo um poucado... Há-de que estava me oferecendo a capanga, paçoca de carnes. Tanto que os tiros tinham esbarrado quase em completo, em partes. Eu, tendo comida minha, de matula, no bornal. Aí, e munição minha de balas, no surrão. Eu carecia lá do Hermógenes? Mas, por que foi então que aceitei, que mastiguei daquela carne, nem fome acho que não tinha direito, enguli daquela farinha? E pedi água. ― Mano velho, bebe, que esta é competente... ― ele riu. O que estava me dando, na cabacinha, era água com cachaça. Bebi. Limpei os beiços. Escorei o cano do rifle, num duro de môita. Eu olhava aquele bom suor, nas costas do Garanço. Ele atirava. Eu atirava. A vida era assim mesmo, coração quejando. Até me caceteou uma lombeira.
E, daí, deu-se. Da banda de longe ― lá pelo tombador de pedra, onde nossa gente com Titão Passos estavam escondidos para a esparrela ― foi um tirotear forte, fogo por salvas. Ah, então era outra partida de zè-bebelos que deviam de estar chegando, drongo deles, cavaleiros. O Hermógenes esticou pescoço, rijo ouvindo. Soante que atiravam, sucedidos, o tiroteio foi mudando de feição. ― Tou gostando não... ― o que o Hermógenes disse. Mais disse! ― O diabo deu em erro... Homem atilado, cachorral. ― Seja que sabidos vieram, eh, pressentiram! Sei se, por ora, o trabalho está desandado... Aí, eu estava escutando. Eu olhei. Olhava para as costas do Garanço, ela, a mancha, estava ficando de outra cor... O suor vermelho... Era sangue! Sangue que empapava as costas do Garanço ― e eu entendi demais aquilo. O Garanço parado quieto, sempre empinado com a frente do corpo, semelhando que o cupim ele tivesse abraçado. A morte é corisco que sempre já veio. Ânsias, ao em que bola me vinha goela arriba, do arrocho grosso, imposto, que às vezes em lágrimas nos olhos se transforma. A bobagem...
Tu, Tatarana, Riobaldo: agora é a má hora! ― era o Hermógenes prevenindo. ― Demo! ― eu repontei. Mas ele não entendeu minha soltura. Soprou: ― A muita cautela. Temos, que se foge em boa ordem: os que estão chegando vêm rodear a gente, vão dar retaguarda. E era. Como que esse maldito tudo sabia, adivinhava o seguinte vivo das coisas, esse Hermógenes, trapaças! Mas ainda me prezei: quem é que me segurava de ir?! ― rastejei de esquinado, os metros, em afogo, carecia de ver se o Garanço podia ter ajuda. ― A pa trás, mano. Te cuida! ― ouvi o rispe do Hermógenes ― que eu não me desgraçasse. Mas não se deixa um cristão amigo deitar seu sangue no capim das môitas, feito um traste roto, caititú caçado. Peguei, com meus braços: não adiantava ― era corpo. Ele estava defunto de não fechar boca ― aí, defunto airado. Todo vejo, o sangue dele a mofos cheirasse. Anda que vinham voo os mosquitos chupadores, e mosca-verde que se ousou, sem o zumbo frisso, perto no ar. Porque os tiros. E nem um momento de vela acesa o Garanço não ia poder ter. ― Vem, tu vem, que estamos no amém estreitos! ― que, enfezado, o Hermógenes chamou. Dei para trás. O perigo saca toda tristeza. E a vez era esta: que o Hermógenes encheu os peitos, e soltou um rinchado zurro, dos de jumento velho em beira de campo.Três tantos. Ele estava dando a retirada. Por outros lados, mais longe, outros o mesmo onco-e-rincho copiavam. ― Arre, fogo, agora, forte fogo! ― o Hermógenes me mandou. Atirei. Atiramos, teúdo. Ao que os companheiros todos atiravam. Assaz à retirada se estava rinchando, mas os inimigos não sabiam: carecia que eles pensassem que a gente ia dar um ataque final. Acharam? E sei. A bala com bala ripostavam. Mas, nós, nesse entrequanto, rompemos o arvoredo, aqui e ali, rojamos para baixo, embora, mesmo. Desunir, assim, verga pior do que avançar. A lanço a lanço, fui, pulei, nos abertos entre árvores, acompanhei o Hermógenes. Aí, eu já estava para lá dele; mas virei e esperei. Porque, na desordem de mente do alvoroço, aquela hora era só no Hermógenes que eu via salvamento, para meu cão de corpo. Quem que diz que na vida tudo se escolhe? O que castiga, cumpre também. Vim. Ainda divulguei, nas sofraldas descentes, homens que corriam, meus iguais, às vezes se subiam do bamburral baixo, feito acãoada codorniz. Viemos. Repassamos o corguinho do Dinho, beiramos uma ipueira. Entramos no cerrado. ― Tu tem tudo, Tatarana? Munição, as armas? ― o Hermógenes me indagou. ― Tenho, se tenho! ― eu respondi, bem. E ele para mim! ― Então, está certo... Agora ele falasse grosseado, com modo de chefe e mando, era assim. E fomos para cinco léguas, entre o norte e o poente, no Cansanção, lugar aonde um punhado dos da gente devia de se engrupar. Para lá fomos, de rastros apagados. Caminhamos prazo dentro de riacho, depois escolhemos para pisar pedras, de nosso pisado com ramos as marcas desmanchamos, e o mais do caminho se seguiu por muitos diversos rodeios.
De tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para que? Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho. Por daí, então, careço de que o senhor escute bem essas passagens! da vida de Riobaldo, o jagunço. Narrei miúdo, desse dia, dessa noite, que dela nunca posso achar o esquecimento. O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! ― porque não sou, não quero ser. Deus esteja!

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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