sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Cuia

          Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé – segundo ele, “mais prestimosa que mãe de noiva” –, tem sempre uma chaleira com água quente pronta para o mate. O analista gosta de oferecer chimarrão a seus pacientes e, como ele diz, “charlar passando a cuia, que loucura não tem micróbio”. Um dia entrou um paciente novo no consultório.
Buenas, tchê – saudou o analista. – Se abanque no más.
O moço deitou no divã coberto com um pelego e o analista foi logo lhe alcançando a cuia com erva nova. O moço observou:
Cuia mais linda.
Cosa mui especial. Me deu meu primeiro paciente. O coronel Macedônio, lá pras banda de Lavras.
A troco de quê? – quis saber o moço, chupando a bomba.
Pues tava variando, pensando que era metade homem e metade cavalo. Curei o animal.
Oigalê.
Ele até que não se importava, pues poupava montaria. A família é que encrencou com a bosta dentro de casa.
A la putcha.
O moço deu outra chupada, depois examinou a cuia com mais cuidado.
Curtida barbaridade.
Também. Mais usada que pronome oblíquo em conversa de professor.
Oigatê.
E a todas estas o moço não devolvia a cuia. O analista perguntou:
Mas o que é que lhe traz aqui, índio velho?
É esta mania que eu tenho, doutor.
Pos desembuche.
Gosto de roubar as coisas.
Sim.
Era cleptomania. O paciente continuou a falar, mas o analista não ouvia mais. Estava de olho na sua cuia.
Passa – disse o analista.
Não passa, doutor. Tenho esta mania desde piá.
Passa a cuia.
O senhor pode me curar, doutor?
Primero devolve a cuia.
O moço devolveu. Daí para diante, só o analista tomou chimarrão. E cada vez que o paciente estendia o braço para receber a cuia de volta, ganhava um tapa na mão.

Luís Fernando Veríssimo, in O analista de Bagé

Nenhum comentário:

Postar um comentário