quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Queequeg em seu caixão

 


Durante a busca, descobriu-se que os últimos barris arriados ao porão estavam em perfeito estado e que o vazamento devia estar mais embaixo. Assim, estando calmo o tempo, seguiram abrindo caminho porão adentro, perturbando o sono das enormes fileiras de barricas do fundo; e, daquela meia-noite escura, mandaram aqueles gigantescos molhes para a luz ao alto. Foram fundo; e tão antigo, e corroído e mofado era o aspecto dos barris mais fundos que a expectativa que se tinha era a de topar com algum barril bolorento e fundador contendo as moedas do capitão Noé, com cópias dos cartazes afixados inutilmente avisando o desvairado mundo antigo sobre o dilúvio. Pipas e mais pipas de água, e pão, carne de vaca, aduelas e feixes de argolas de ferro, foram alçadas, até que, por fim, o convés atulhado se tornou quase intransponível; e o casco oco ressoava sob os pés, como se você estivesse andando sobre catacumbas vazias, e balançava e jogava no mar como um garrafão carregado de ar. O navio estava pesado no topo, como um estudante em jejum que tivesse todo Aristóteles na cabeça. Bom para eles que os Tufões não os tivessem visitado naquela ocasião.
Ora, foi nessas circunstâncias que meu pobre companheiro pagão, meu amigo do peito, Queequeg, foi acometido por uma febre que o levou a quase dois passos do fim infinito.
Seja dito que, neste ofício de baleeiro, se desconhecem as sinecuras; a dignidade e o perigo andam de mãos dadas; enquanto não se chega a Capitão, mais alto o cargo, mais pesado é o trabalho. Assim era para o pobre Queequeg, que na qualidade de arpoador não apenas devia enfrentar a fúria da baleia viva, mas – como vimos alhures – montar no dorso do cadáver em mar aberto; e, por fim, descer às trevas do porão e suar amargamente o dia inteiro nessa prisão subterrânea, manejando resoluto os mais canhestros barris e cuidar de sua estiva. Em suma, entre os baleeiros, os arpoadores são os chamados homens do porão.
Pobre Queequeg! Quando o navio estava quase estripado, você deveria ter se inclinado sobre a escotilha e olhado para ele lá embaixo; onde, reduzido às suas ceroulas de lã, o selvagem tatuado rastejava em meio à umidade e ao lodo, como um lagarto verde malhado no fundo de um poço. E um poço ou depósito de gelo foi o que provou ser para o pobre pagão; onde, estranho dizer, apesar do calor de seu suor, apanhou um resfriado terrível que descambou em febre; e que, por fim, depois de um sofrimento de dias, o obrigou à rede, junto à soleira da porta da morte. Como definhou e definhou naqueles poucos dias vagarosos, até que lhe parecia restar pouco mais do que osso e tatuagem. Mas, enquanto todo o resto definhava e os ossos da face ficavam mais salientes, os olhos, no entanto, pareciam ficar cada vez maiores; adquiriram um fulgor de estranha tranquilidade; e plácidos, porém penetrantes, olhavam para você do fundo da doença, um testemunho maravilhoso da saúde imortal que tinha e não podia morrer, nem enfraquecer. E, como os círculos na água que, à medida que enfraquecem, expandem; seus olhos davam voltas e mais voltas como os anéis da Eternidade. Um terror sem nome dominava quem quer que se sentasse ao lado do selvagem enfermiço e visse coisas tão estranhas em seu rosto quanto as testemunhadas pelos presentes à morte de Zoroastro. Pois tudo o que é verdadeiramente prodigioso e assustador no homem ainda não foi expresso em palavras ou em livros. E a aproximação da Morte, que a todos iguala, a todos impressiona com uma última revelação que só um autor dentre os mortos poderia expressar com propriedade. De modo que – digo de novo – nenhum Caldeu ou Grego moribundo teve mais sagrados ou elevados pensamentos do que aqueles cujas sombras misteriosas se insinuavam pelo rosto do pobre Queequeg, enquanto jazia tranquilo na rede, balançando, e o mar ondulante parecia embalá-lo ao repouso final, e a maré invisível do oceano o elevava sempre mais alto em direção ao céu de seu destino.
Não houve um homem da tripulação que não o considerasse perdido; e, quanto ao próprio Queequeg, o que ele pensava de seu caso demonstrou-se de maneira convincente por um curioso favor que pediu. Chamou um dos marinheiros para junto de si, na cinzenta vigília matinal quando o dia apenas raiava, e, pegando em sua mão, disse-lhe que vira por acaso em Nantucket pequenas canoas de madeira escura, como a preciosa madeira de guerra de sua ilha natal; e, informando-se, veio a saber que todos os baleeiros que morriam em Nantucket eram colocados naquelas mesmas canoas escuras e a ideia de jazer desse modo muito lhe agradara; pois não diferia do costume de sua própria gente, que, depois de embalsamar um guerreiro morto, o estendia em sua canoa e o deixava à deriva entre os arquipélagos estrelados; pois não apenas acreditava que as estrelas eram ilhas, mas que muito além do horizonte visível seus serenos mares sem continentes se mesclavam com os céus azuis; dando assim origem aos brancos vagalhões da Via-Láctea. Acrescentou que estremecia com a ideia de ser enterrado com sua rede, segundo o costume marítimo, atirado como alguma coisa desprezível aos tubarões devoradores de mortos. Não: ele desejava uma canoa como aquelas de Nantucket, tanto mais apropriadas, sendo ele um baleeiro, pois, como os botes baleeiros, essas canoas-caixão não portavam quilhas; embora isso implicasse uma navegação bastante incerta e uma grande deriva para as eras sombrias.
Ora, quando esse caso estranho foi levado à ré, o carpinteiro recebeu ordens de atender às vontades de Queequeg, quaisquer que fossem suas implicações. Havia a bordo uma velha madeira pagã, cor de caixão, que, no decurso de uma longa viagem anterior, havia sido cortada nos bosques nativos das ilhas Laquedivas, e dessas tábuas escuras recomendou-se que o caixão fosse feito. Não tardou mais o carpinteiro a receber a ordem do que, tomando a régua, encaminhar-se com toda a indiferente presteza que o caracterizava para o castelo de proa e tomar as medidas de Queequeg com muita perícia, tracejando regularmente o giz na pessoa do arpoador enquanto movia a régua.
Ah! Pobre-diabo! Terá de morrer agora!”, exclamou o marinheiro de Long Island.
De volta à sua bancada, o carpinteiro, por comodidade ou referência geral, transferiu-lhe o exato comprimento que o caixão deveria ter, e então tornou permanente tal transferência, talhando duas fendas nas extremidades. Feito isso, enfileirou tábuas e ferramentas e pôs-se a trabalhar.
Quando o último prego foi cravado, e a tampa devidamente aplainada e ajustada, o carpinteiro levou o caixão aos ombros sem esforço e seguiu com ele à frente, perguntando se ali já estavam prontos para usá-lo.
Ouvindo os gritos indignados, porém um tanto engraçados, com que as pessoas do convés empurravam o caixão para longe de si, Queequeg, para a consternação geral, ordenou que o objeto fosse imediatamente trazido até ele, e não houve quem o negasse; visto que, de todos os mortais, certos moribundos são os mais tirânicos; e, sem dúvida, uma vez que em pouco tempo eles nos darão tão pouco trabalho para sempre, os caprichos dos pobres-diabos devem ser atendidos.
Debruçando-se na beira da rede, Queequeg demorou-se a contemplar o caixão com olhares atentos. Pediu então seu arpão, fez com que lhe tirassem o cabo de madeira e então ordenou que colocassem a parte metálica no caixão junto a um dos remos de seu bote. Ainda segundo sua vontade, foram espalhados biscoitos por toda sua volta interna: um frasco de água doce foi depositado à cabeceira, e um saquinho de pó de madeira lixada do porão posto a seus pés; e, sendo um pedaço de lona de vela enrolado à guisa de travesseiro, Queequeg apelou para que fosse levado a seu último leito, para poder experimentar de sua comodidade, se é que havia. Ficou ali deitado sem se mover por alguns minutos e então pediu para que alguém fosse a seu embornal e lhe trouxesse seu pequeno deus, Yojo. Então, cruzando os braços sobre o peito com Yojo entre eles, solicitou que a tampa do caixão (chamou-a de escotilha) fosse colocada sobre ele. A extremidade da cabeça abria-se com uma dobradiça de couro, e ali Queequeg permaneceu, deitado em seu caixão, mostrando um pouco de seu semblante sereno. “Rarmai” (serve; é confortável), murmurou por fim, e fez sinal para que o recolocassem na rede.
Mas, antes que isso fosse feito, Pip, que todo o tempo vagava furtivamente pelas imediações, aproximou-se de onde ele jazia e, com soluços brandos, tomou-o pela mão; enquanto a outra segurava seu pandeiro.
Pobre andarilho! Você não cansa nunca de vagar? Aonde você vai agora? Se as correntezas levarem seu corpo para aquelas Antilhas queridas, onde apenas os nenúfares alcançam as praias, você poderia fazer uma pequena busca para mim? Procure um certo Pip, há muito desaparecido: creio que ele está numa daquelas remotas Antilhas. Se você o encontrar, console-o; pois deve estar triste. Veja! Deixou seu pandeiro para trás; – eu o encontrei. Rig-a-dig, dig, dig! Agora, Queequeg, morra; e eu tocarei sua marcha fúnebre.”
Ouvi dizer”, murmurou Starbuck, observando pela escotilha, “que no decurso de febres violentas homens, de todo ignorantes, falaram línguas antigas; e quando o mistério é posto à prova sempre se descobre que em sua infância inteiramente esquecida essas línguas antigas haviam sido faladas a seus ouvidos por alguns notáveis eruditos. Assim, segundo minha mais sincera crença, o pobre Pip, nessa estranha doçura de sua insanidade, traz garantias celestiais de todas as nossas pátrias celestiais. Onde teria aprendido isso, senão lá? – Escuta! Ele fala de novo; agora, no entanto, com mais veemência.”
Formem dois a dois! Façamos dele um General! Oh, onde está seu arpão? Coloquem-no aqui, de atravessado – Rig-a-dig, dig, dig! Hurra! Ai, se um galo corajoso pousasse na cabeça dele e cantasse! Queequeg morre corajoso! – lembrem-se disto; Queequeg morre corajoso! – prestem bastante atenção a isso; Queequeg morre corajoso! – repito; corajoso, corajoso, corajoso! Mas o pequeno e desprezível Pip, esse morreu covarde, morreu tremendo inteiro; – fora, Pip! Escute aqui; se você encontrar esse Pip, diga em todas as Antilhas que ele é um fugitivo; um covarde, um covarde, um covarde! Diga-lhes que pulou de um bote baleeiro! Eu nunca tocaria meu pandeiro para o desprezível Pip, nem o celebraria General, se ele estivesse morrendo de novo aqui. Não, não! Vergonha sobre todos os covardes – vergonha sobre eles! Que se afoguem como Pip, que pulou de um bote baleeiro. Vergonha! Vergonha!”
Durante todo esse tempo, Queequeg permaneceu deitado de olhos fechados, como num sonho. Pip foi levado, e o homem doente foi recolocado na rede.
Porém, agora que ele aparentemente havia encerrado todos os preparativos para a morte; agora que o caixão se mostrava bem adaptado, Queequeg subitamente se recobrou; logo parecia não haver mais necessidade da caixa do carpinteiro; e, daí que, quando alguém expressava sua alegre surpresa, ele respondia, em substância, que a causa de sua repentina convalescença era a seguinte; – em um momento crítico, lembrara-se de uma pequena obrigação, que havia ficado pendente em terra; daí que mudara de idéia sobre morrer: ainda não podia morrer, declarou. Perguntaram-lhe, então, se viver ou morrer era uma questão de seu desejo e prazer soberanos. Certamente, respondeu. Resumindo, era do pensamento de Queequeg acreditar que, se um homem decidisse viver, uma simples doença não poderia matá-lo: nada, exceto uma baleia, uma tormenta, ou qualquer força destrutiva violenta, estúpida e ingovernável dessa natureza.
Ora, existe uma diferença digna de nota entre os selvagens e os civilizados; enquanto, digamos, um doente civilizado pode passar seis meses convalescendo, um doente selvagem pode ficar quase curado em um dia. Assim, em boa hora, meu Queequeg recuperou sua força; e depois de ter permanecido sentado ao molinete por uns poucos dias indolentes (mas comendo com apetite vigoroso), de repente pôs-se de pé, esticou os braços e as pernas, alongou-se bem, bocejou um pouquinho e então, saltando para a proa de seu bote suspenso, e brandindo o arpão, declarou estar pronto para a luta. 
Com uma selvagem extravagância, servia-se agora do caixão como arca; e, retirando as roupas de seu embornal de lona, arrumou-as ali. Passou muitas horas de folga entalhando a tampa com todo o tipo de figuras e desenhos grotescos; e parecia desse modo empenhado, segundo sua rudeza de modos, em copiar partes da intricada tatuagem de seu corpo. E essa tatuagem fora obra de um finado profeta e vidente de sua ilha, o qual, mediante tais sinais hieroglíficos, escrevera em seu corpo uma teoria completa dos céus e da terra e um tratado místico sobre a arte de alcançar a verdade; de modo que Queequeg, por seu próprio corpo, era um enigma a ser decifrado; uma maravilhosa obra em um volume; mas cujos mistérios nem mesmo ele próprio podia ler, ainda que seu próprio coração pulsante batesse contra eles; e esses mistérios estivessem, portanto, destinados a se desfazer no pó do pergaminho vivo em que estavam inscritos e ficar sem solução até o fim. E deve ter sido esse pensamento que sugeriu a Ahab aquela sua furiosa exclamação, quando certa manhã ele retornava da visita ao pobre Queequeg – “Oh, diabólica tentação dos deuses!”.

Herman Melville, in Moby Dick

Nenhum comentário:

Postar um comentário