terça-feira, 29 de dezembro de 2020

O mundo

             Jenny sempre gostou de andar de ônibus.
Ela gostava de se sentar à janela e ver a paisagem passar. As montanhas, o fiorde, as casas, as vitrinas, as pessoas...
Era como se estivesse folheando um livro.
No ônibus ela podia ficar sentada sem ser perturbada e ouvir em segredo a conversa-fiada das pessoas, e não precisava arrumar alguma desculpa para isso.
As horas em que Jenny refletia mais intensamente eram durante as viagens de ônibus que fazia todos os dias entre Asane e Bergen. As poucas ocasiões em que seus pensamentos giravam em torno de outros temas além de economia e das bagatelas do cotidiano eram no ônibus.
No ônibus ela vira o nascer do sol. No ônibus vivera o crepúsculo. No ônibus tinha se dado conta do paradoxo que é um ser humano não viver eternamente.
Jenny estava sentada atrás de uma mãe e de seu falante filho de seis ou sete anos.
O menino acabara de atingir o estágio da vida em que havia se acostumado à realidade. O mundo não era mais algo novo em folha ou inexplorado. Ele ainda podia descobrir muitas coisas novas, mas há tempo o mundo já não oferecia mais motivos para se maravilhar. Ele havia deixado de ser uma permanente revelação.
Duas fileiras à frente, uma menina de dois anos estava sentada no colo de seu pai. Num momento, ela puxava a barba de seu papai; no momento seguinte, soltava-se dele e apontava entusiasmada para fora da janela.
Essa menininha era um ser totalmente diferente do garoto de sete anos. Ela ainda estava nos anos mágicos. Para ela, o mundo era ainda tão novo como no sétimo dia, em que o Senhor descansou. E a menina via que tudo era bom...
Se o motorista de repente tivesse colocado o ônibus no piloto automático para sair flutuando pelo teto do ônibus sobre a cabeça dos passageiros, talvez ela apontasse para ele e dissesse: “Olha, papai, o homem está voando!”.
O pai, um professor universitário ou educador social com seus trinta e poucos anos, provavelmente teria sofrido um choque. Simplesmente porque estava no mundo havia mais de trinta anos sem nunca antes ter vivido nada semelhante. Sim, apenas por isso.
Agora a menina apontava para uma ambulância com sinal luminoso e sirene tocando. O veículo passou pelo ônibus a toda velocidade na direção de Soreide. Para a menina pequena, tudo isso era extraordinário.
O pai deixava-se guiar e olhava para tudo o que sua filha apontava. Certamente ele participava das experiências de sua filha apenas por considerações de ordem pedagógica. Ele já vira inúmeras ambulâncias.
Mal a menina havia se sentado, já se soltava novamente. Agora ela apontava, sem caber em si de tanto entusiasmo, para um cavalo em frente a um grande estábulo.
Au-au! — disse.
Cavalo, Camila, é um cavalo. O professor tinha razão.
Se tivesse visto um Canguru pela janela do ônibus, com certeza ele teria cocado a cabeça intrigado — sem dúvida, apenas porque já havia feito a viagem para Fjosanger muitas vezes sem nunca ter deparado com um Canguru.
A menininha, por sua vez, provavelmente teria exclamado novamente com todo o entusiasmo: “Au-au!”.
Ver um Canguru para ela não teria sido nem mais nem menos emocionante. Ela ainda não possuía conhecimentos de zoologia tão bons assim.
Na verdade, nesse momento ela estava vendo um Canguru. Com um filhote dentro da pequena bolsa em sua barriga. Ou um elefante. Um elefante cor-de-rosa. Com asas douradas e prateadas...
A pequena Camila mergulhou em seu conto de fadas. Um conto em que o professor universitário talvez apenas conseguisse mergulhar se de repente o espaço à sua volta se enchesse de anjinhos.
Ter uma doença incurável significava um aguçamento incrível da memória. De repente, Jenny podia se lembrar tão bem de sua infância, que não tinha nenhuma dificuldade em se identificar com aquela menininha de dois anos tão maravilhada com tudo o que via.
Jenny tinha a sensação de estar vendo o mundo pela primeira vez. Muito embora fosse a última. Mas no fundo não era a mesma coisa? Como a garotinha à sua frente no ônibus, ela estava na extrema fronteira do mundo.
Jenny olhou para fora da janela.
A grama estava tão verde, a montanha tão alta e seus contornos tão definidos, o céu vespertino de um azul tão deslumbrante e as pessoas e os animais tão vivazes.
O mundo parecia ter sido criado havia apenas poucos minutos. Como se um mágico tivesse acabado de tirar a realidade da manga do paletó.
Lá em cima na encosta, ainda se viam algumas manchas de neve. Uma última saudação do ano passado.
De uma vida...
Jenny não veria mais a neve caindo em flocos do céu. Seu ciclo fora interrompido e soara o aviso da última rodada.
Neve!
Jenny ainda se lembrava da primeira vez em que vira algo branco sobre a terra. Na primeira de todas as manhãs de inverno do mundo. Um espesso tapete de uma geada de grãos graúdos cobrira tudo como um cobertor gelado.
Açúcar! — ela exclamara.
Ela se aprumara em seu carrinho e sacudira vivamente os braços.
Açúcar!
Isso havia sido no tempo em que ela ainda desfrutava desse esplendor. Ela não vira outra coisa senão uma paisagem confeitada.
O mundo é um enigma, pensava Jenny agora. Mas nós nos acostumamos a esse enigma quando crescemos. Até que ao final não nos acontece mais absolutamente nada enigmático. O mundo torna-se constante e previsível. E precisamos refletir profundamente para destituir o mundo de sua aparente compreensibilidade. Precisamos nos aprofundar intensamente em nós mesmos se quisermos vivenciar o mundo como mistério...
Não é engraçado?
O único verdadeiro mistério é aquele que vemos. Mas é o único que nunca é mencionado.
Isso diz respeito a todas as pessoas. Mas não é um tema de conversa. Nada é tão obscuro quanto o que é cristalino.
Nada é tão oculto quanto o que vivemos em cada um dos dias.
Aqui despertamos num globo terrestre no Universo. Num globo flutuante. Uma esfera mágica. Com lagos, florestas e montanhas. E uma pitada de vida em todas as formas e tamanhos.
Aqui a matéria espalha-se pelo campo. Aqui ela desponta do solo entre pedras e árvores. Aqui ela fervilha em rios e lagos. Aqui ela tremula no ar entre o céu e a terra. E mais ainda, mais: a matéria neste misterioso planeta é consciente de si mesma. Ela abre os braços e diz: “Opa! Lá vou eu!”.
E, apesar de tudo, depois é assim. Nos acostumamos a tudo o que está à nossa volta e agimos como se tivesse que ser assim. Consideramos a vida neste planeta a forma mais racional de existência. Talvez ainda consideremos os dodos e os dinossauros algo extraordinário, mas apenas porque eles não existem mais.
Ainda na terceira ou na quarta série, Jenny admirava-se de que na Austrália as pessoas não despencassem da superfície da terra. Ela achava isso espantoso, do mesmo modo que teria ficado perplexa com o contrário: caso os australianos de fato caíssem no espaço sideral.
O que ela sabia naquela época sobre “leis da natureza” — leis da natureza, o que era isso?
Camila e o “au-au” lembraram a Jenny salas de leitura e grupos de trabalho.
Quinze ou vinte anos antes, ela lera os dois volumes da História da filosofia, de Arne Naess, para um exame. Ela só conseguia se lembrar de uma frase — talvez porque tivesse lhe parecido verdadeira logo à primeira vista: “Nada existe na consciência que antes não tenha existido nos sentidos”.
Algum filósofo havia formulado mais ou menos assim. Agora ela pensava de novo nessa frase — e ela lhe parecia a quintessência de tudo o que é possível dizer sobre este mundo.
Todos nascemos com uma série de expectativas perante o mundo, que depois se concretizam ou não. Assim, aceitaríamos também qualquer outro tipo de ordem no mundo.
No que diz respeito à racionalidade, a realidade não leva nenhuma vantagem sobre qualquer conto de fadas. Do ponto de vista da lógica, todas as ordens são igualmente possíveis no mundo. Ou impossíveis. Mas o homem é dotado de uma capacidade de adaptação inconcebível. Se conseguimos nos manter a cada dia na realidade sem perder o entendimento, sem nem ao menos piscar os olhos, é porque somente a realidade é real, somente ela é um fato.
Quem é que acreditaria na realidade sem que fossem apresentadas provas de que ela existe?
O mundo, pensou Jenny, o mundo vira um hábito. Tudo é inflacionado. Se começar a acontecer um milagre após o outro, ao final só poderemos estar indiferentes. Até que chega o dia em que simplesmente não vemos mais que existe um mundo.
Uma coisa só pode nos parecer enigmática se contrastada com nossas expectativas. Somente nos surpreendemos ainda quando a longa série de nossas expectativas é quebrada. O mundo precisa dar uma guinada. E nós precisamos viver algo “sobrenatural” para sentir na própria pele que existimos.
Jenny olha novamente para fora da janela.
Soreide. Uma cidadezinha a dez quilômetros ao sul de Bergen. Algumas lojas, uma escola, uma agência de correio. Uma noite quieta de um dia de trabalho. Jenny olha para tudo com a visão aguçada de uma criança.
A única coisa que torna este mundo mais plausível do que a mais alucinada fantasia é o fato de que ele existe. Deixando essa diferença de lado, Soreide é tão incompreensível para a razão quanto a Terra Média dos hobbits ou o País das Maravilhas de Alice.
Isso também deve ter sido formulado mais ou menos assim por algum filósofo. O grande mistério não consiste em como o mundo é, mas apenas em que ele existe.
Essa tese também marcou Jenny na época em que ela se preparava para o exame de filosofia. Essa frase parecia abranger tudo o que se podia imaginar.
Mas em todos os anos que desde então se passaram ela nunca mais havia pensado nisso. Estava ocupada demais em viver. O mundo em si não é um tema com o qual se deva quebrar a cabeça todos os dias.
Mas quando de repente alguém descobre que está com câncer, a coisa fica bem diferente. Então, palavras como mundo, vida ou morte passam a ter mais importância. Os doentes de câncer muitas vezes desenvolvem uma apurada sensibilidade para as grandes questões existenciais. Muitos chegam a afirmar que isso faz parte do quadro da doença.
No Wesselstue, porém, esses pensamentos não estavam exatamente na ordem do dia. Essas idéias eram estranhas aos médicos e professores de Finse. Eles eram saudáveis demais para elas. Eles eram um pouco animais demais para elas.
O que os diferenciava, então, das vacas e ovelhas em Blomsterdalen? Eles simplesmente estavam lá. Absolutamente sem notar isso. Sem recuar um passo.
O que teria movido Siri em Finse se existisse apenas um sexo sobre a terra? Talvez ela tivesse ficado observando as estrelas. Talvez ela tivesse deitado a cabeça para trás para olhar o Universo. Talvez tivesse descoberto a si mesma e se perguntado de onde teria vindo.
Quase toda sua vida na terra Jenny vivera como uma personagem de história em quadrinhos, sem uma consciência de si mesma. Apenas uma rara vez, a consciência da própria existência lhe percorrera o corpo como um calafrio.
Uma pessoa vive no máximo oitenta ou noventa anos, ela pensou agora. Uma geração sucede a outra... Todos temos que morrer... Não vivemos para sempre — no trato entre as pessoas existem muito floreios.
Se vivêssemos apenas três ou quatro anos, precisaríamos nos conformar com isso exatamente da mesma maneira. Seria essa então a nossa natureza. Mesmo se vivêssemos mil ou dez mil anos, também estaríamos insatisfeitos quando o final se aproximasse.
Trinta e seis anos...
Um dia na eternidade. Um piscar de olhos no tempo. Não fazia muito tempo que Jenny tinha a sensação de ser adulta. Ela ainda era uma principiante.
E, mesmo assim, não invejava mais os outros pela indulgência de alguns parcos dias a mais. Ter mais uma semana ou mil anos de vida no fundo não fazia diferença, se de qualquer forma ela deixaria de existir um dia. Afinal de contas, existiam questões mais importantes do que o exato momento em que a vida de um único indivíduo chega ao fim. Tratava-se de algo mais do que simplesmente regatear a hora de partir.
Não sou eu quem está doente, ela pensou. O mundo está doente. Pois, afinal de contas, “tudo o que vem a ser é digno de perecer”.
Buda também se referiu a isso quando disse que tudo no mundo está preenchido por sofrimento. Existem muitas coisas boas no mundo. Muito a que nos afeiçoamos. Mas nada daquilo que amamos e a que nos apegamos perdura.
Será que não existia um remédio contra seu medo de se perder de si mesma? Não havia nada que curasse Jenny de seu desejo intenso de viver, nada que a libertasse de sua sede de vida? Não existia uma perspectiva que fosse mais importante do que a questão do ser ou não ser?
Com essa questão ocupava-se Jenny no último posto avançado do mundo.

Jostein Gaarder, in O pássaro raro

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