terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Migalhas

          Dédalo o havia advertido claramente, dito e repetido dezenas de vezes: “Põe-te a meia altura, meu Ícaro, nem muito perto do mar nem próximo do sol. Nem tão perto do mar que as asas te pesem, nem tão perto do sol que derretam. Não te ponhas a contemplar Bootes ou a Hélice ou a espada desembainhada de Órion”. Mas o filho começa a achar gozo no audacioso voo e, arrastado pelo fascínio do céu, segue para as alturas, para de lá cair, restando ao pai apenas a visão das penas que abundam sobre as águas.
Solitário e impotente, só lhe cabe prosseguir em seu voo rumo à Sicília, o destino planejado. Ao aterrissar, Dédalo é festejado por todos, uns maravilhados e outros temerosos com o voo humano, coisa jamais antes vista. Dédalo desfaz-se rapidamente das asas, larga-as de qualquer jeito e ainda faz menção de chutá-las, porém contém-se, ele que é o mestre do avanço calculado. Mas não resiste a xingá-las: “Malditas asas, maldita cera, maldito engenho humano”. E desata a soltar disparates contra si mesmo, contra o rei Minos, o minotauro, Ariadne, sem que ninguém entenda do que se trata nem o porquê daquela raiva desmedida.
Tirésias, que, não se sabe como, surge inopinadamente nas mais desencontradas tragédias e mitos, abusando de qualquer nexo narrativo, por acaso também está no meio da multidão, que testemunha tanto o milagre do voo e aterrissagem do arquiteto como seu irado desabafo. E, como não podia deixar de ser, aproxima-se dele, caminhando por entre os curiosos, que respeitosamente lhe abrem passagem, enquanto perguntam ao velho sábio o motivo de tamanha cólera. Dédalo, que já o conhecia como mediador da discussão entre Zeus e Hera, como vidente em Ulisses e também por sua participação em Édipo rei, não pode deixar de assustar-se com sua presença ali, pois o engenheiro não se considera à altura de tão ilustre visita.
E narra tudo ao cego. O labirinto, a prisão, o projeto e a construção das asas, suas repetidas advertências ao filho, o voo vaidoso de Ícaro e a consequente queda. Tudo entremeado de imprecações dirigidas a todos os deuses, aos homens, mas principalmente a si mesmo.
Você maldiz a todos, compreensivelmente. Afinal, perdeu seu filho amado sobre todas as coisas. Mas não enxerga o único verdadeiro culpado, que é ele próprio, cego em sua desmedida, perdido por sua húbris.
Um minuto, Tirésias. Você me critica por não enxergar o culpado, meu filho, Ícaro, cego de vaidade, mas o único cego aqui é você mesmo. Desculpe se o desrespeito, sei que você é importante e tem boas relações com os principais deuses do Olimpo, mas não posso deixar de dizê-lo.
Você já deveria saber, a essa altura do campeonato e da história, que é justamente minha cegueira que me permite enxergar além de todos vocês, ofuscados que estão pela visão apenas superficial de todas as coisas. Pois não ver a luz é a única forma de enxergar o que se passa na escuridão das almas e, acima de tudo, o que nelas transcorre é seu maior problema, o que desgraça a todos: a desmedida. Quem não se recusa a ver as sombras sabe que no fundo do coração de todos os seres mora ela, a soberba. Não há criatura que escape a isso, e Ícaro, talvez pela juventude, talvez pela proximidade do sol, que o seduziu, perdeu o sentido capaz de nos afastar da presunção, a moderação, que só se pratica através do pensamento reto e contido.
Mas como você consegue continuar repetindo essa ladainha, mito atrás de mito, tragédia atrás de tragédia? Não percebe que esse é o destino de todos os heróis, em todas elas? Desafiar o lote programado pelos deuses para nós, pobres mortais, e terminar sendo punidos com toda a crueldade do mundo, por quererem, ainda que às vezes inadvertidamente, igualar-se a eles? Você não entende que isso é soberba e ciúme, mas da parte dos deuses, que pregam a moderação para que nós, humanos, não possamos obter os mesmos prazeres, sentir o mesmo êxtase que eles, restando a nós apenas moderar, moderar, moderar? Ah, para o daemon que o carregue com tanta moderação. Você não se cansa de dizer sempre a mesma coisa? Será que ao longo de todos esses anos, quer dizer, milênios, não aprendeu alguma coisa nova?
Não. Não me canso com a mesmidão de tudo, pois é também o destino da humanidade repetir-se. E, sim, você tem razão quando fala dos deuses, cuja maior diversão é mesmo observar as travessuras humanas e jactar-se da sua incapacidade em aprender. Eles sabem que vocês não vão se cansar de desafiá-los e eles não se cansarão de puni-los. Mas o que têm vocês com isso? Essa é uma questão puramente divina. O problema humano, a falta de moderação, é só seu e posso lhe garantir, quanto mais a praticarem, mais próximos vocês estarão do que chamam de felicidade, a maior entre todas as imoderações.
Mas quem me garante que Ícaro não foi feliz em sua contemplação tão próxima do sol? Como posso saber se esse prazer intenso, ainda que fugaz, não foi maior e melhor do que toda uma vida moderada? E por que não podem os deuses divertir-se com outras coisas? A medida pode ser necessária para meu trabalho, a engenharia, mas para a vida é preciso que haja o que eu chamaria de instâncias de perdição e de erro; a vida, como você já deveria saber, é feita de luz e escuridão e ninguém consegue suportar somente a meia-luz. Dane-se sua filosofia de cego que enxerga. Quero ver aqui mesmo, em meio à luz. Quero ver o que viu meu filho, quero morrer por ele e, como ele, aproximar-me do que parece impossível. Ou será que não só ele, mas também eu estou sendo punido por ter voado, por ter atingido o que somente os deuses sabem fazer? Chega de tanta inveja. O que eles temem, que nós os superemos em inteligência e, por isso, recomendam-nos tanta mornidão? Pois vá para o inferno, Tirésias, você e todos os seus mitos.
Dédalo deixou o sábio ali, falando sozinho, tentando argumentar. Desgovernou-se solitário em sua imprudência, sem redenção possível, pelos caminhos da Sicília, da Ática e da Beócia, sem jamais voltar a usar as malditas asas. Entretanto, sem que percebesse, foi deixando cair, por entre frestas imperceptíveis de seus novos inventos, migalhas de desproporção e ousadia que, mais tarde, seriam fartamente usadas por outros heróis, como Ahab, Quixote e Pantagruel.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

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