Dédalo
o havia advertido claramente, dito e repetido dezenas de vezes:
“Põe-te a meia altura, meu Ícaro, nem muito perto do mar nem
próximo do sol. Nem tão perto do mar que as asas te pesem, nem tão
perto do sol que derretam. Não te ponhas a contemplar Bootes ou a
Hélice ou a espada desembainhada de Órion”. Mas o filho começa a
achar gozo no audacioso voo e, arrastado pelo fascínio do céu,
segue para as alturas, para de lá cair, restando ao pai apenas a
visão das penas que abundam sobre as águas.
Solitário
e impotente, só lhe cabe prosseguir em seu voo rumo à Sicília, o
destino planejado. Ao aterrissar, Dédalo é festejado por todos, uns
maravilhados e outros temerosos com o voo humano, coisa jamais antes
vista. Dédalo desfaz-se rapidamente das asas, larga-as de qualquer
jeito e ainda faz menção de chutá-las, porém contém-se, ele que
é o mestre do avanço calculado. Mas não resiste a xingá-las:
“Malditas asas, maldita cera, maldito engenho humano”. E desata a
soltar disparates contra si mesmo, contra o rei Minos, o minotauro,
Ariadne, sem que ninguém entenda do que se trata nem o porquê
daquela raiva desmedida.
Tirésias,
que, não se sabe como, surge inopinadamente nas mais desencontradas
tragédias e mitos, abusando de qualquer nexo narrativo, por acaso
também está no meio da multidão, que testemunha tanto o milagre do
voo e aterrissagem do arquiteto como seu irado desabafo. E, como não
podia deixar de ser, aproxima-se dele, caminhando por entre os
curiosos, que respeitosamente lhe abrem passagem, enquanto perguntam
ao velho sábio o motivo de tamanha cólera. Dédalo, que já o
conhecia como mediador da discussão entre Zeus e Hera, como vidente
em Ulisses e também por sua participação em Édipo rei, não
pode deixar de assustar-se com sua presença ali, pois o engenheiro
não se considera à altura de tão ilustre visita.
E
narra tudo ao cego. O labirinto, a prisão, o projeto e a construção
das asas, suas repetidas advertências ao filho, o voo vaidoso de
Ícaro e a consequente queda. Tudo entremeado de imprecações
dirigidas a todos os deuses, aos homens, mas principalmente a si
mesmo.
— Você
maldiz a todos, compreensivelmente. Afinal, perdeu seu filho amado
sobre todas as coisas. Mas não enxerga o único verdadeiro culpado,
que é ele próprio, cego em sua desmedida, perdido por sua húbris.
— Um
minuto, Tirésias. Você me critica por não enxergar o culpado, meu
filho, Ícaro, cego de vaidade, mas o único cego aqui é você
mesmo. Desculpe se o desrespeito, sei que você é importante e tem
boas relações com os principais deuses do Olimpo, mas não posso
deixar de dizê-lo.
— Você
já deveria saber, a essa altura do campeonato e da história, que é
justamente minha cegueira que me permite enxergar além de todos
vocês, ofuscados que estão pela visão apenas superficial de todas
as coisas. Pois não ver a luz é a única forma de enxergar o que se
passa na escuridão das almas e, acima de tudo, o que nelas
transcorre é seu maior problema, o que desgraça a todos: a
desmedida. Quem não se recusa a ver as sombras sabe que no fundo do
coração de todos os seres mora ela, a soberba. Não há criatura
que escape a isso, e Ícaro, talvez pela juventude, talvez pela
proximidade do sol, que o seduziu, perdeu o sentido capaz de nos
afastar da presunção, a moderação, que só se pratica através do
pensamento reto e contido.
— Mas
como você consegue continuar repetindo essa ladainha, mito atrás de
mito, tragédia atrás de tragédia? Não percebe que esse é o
destino de todos os heróis, em todas elas? Desafiar o lote
programado pelos deuses para nós, pobres mortais, e terminar sendo
punidos com toda a crueldade do mundo, por quererem, ainda que às
vezes inadvertidamente, igualar-se a eles? Você não entende que
isso é soberba e ciúme, mas da parte dos deuses, que pregam a
moderação para que nós, humanos, não possamos obter os mesmos
prazeres, sentir o mesmo êxtase que eles, restando a nós apenas
moderar, moderar, moderar? Ah, para o daemon que o carregue com tanta
moderação. Você não se cansa de dizer sempre a mesma coisa? Será
que ao longo de todos esses anos, quer dizer, milênios, não
aprendeu alguma coisa nova?
— Não.
Não me canso com a mesmidão de tudo, pois é também o destino da
humanidade repetir-se. E, sim, você tem razão quando fala dos
deuses, cuja maior diversão é mesmo observar as travessuras humanas
e jactar-se da sua incapacidade em aprender. Eles sabem que vocês
não vão se cansar de desafiá-los e eles não se cansarão de
puni-los. Mas o que têm vocês com isso? Essa é uma questão
puramente divina. O problema humano, a falta de moderação, é só
seu e posso lhe garantir, quanto mais a praticarem, mais próximos
vocês estarão do que chamam de felicidade, a maior entre todas as
imoderações.
— Mas
quem me garante que Ícaro não foi feliz em sua contemplação tão
próxima do sol? Como posso saber se esse prazer intenso, ainda que
fugaz, não foi maior e melhor do que toda uma vida moderada? E por
que não podem os deuses divertir-se com outras coisas? A medida pode
ser necessária para meu trabalho, a engenharia, mas para a vida é
preciso que haja o que eu chamaria de instâncias de perdição e de
erro; a vida, como você já deveria saber, é feita de luz e
escuridão e ninguém consegue suportar somente a meia-luz. Dane-se
sua filosofia de cego que enxerga. Quero ver aqui mesmo, em meio à
luz. Quero ver o que viu meu filho, quero morrer por ele e, como ele,
aproximar-me do que parece impossível. Ou será que não só ele,
mas também eu estou sendo punido por ter voado, por ter atingido o
que somente os deuses sabem fazer? Chega de tanta inveja. O que eles
temem, que nós os superemos em inteligência e, por isso,
recomendam-nos tanta mornidão? Pois vá para o inferno, Tirésias,
você e todos os seus mitos.
Dédalo
deixou o sábio ali, falando sozinho, tentando argumentar.
Desgovernou-se solitário em sua imprudência, sem redenção
possível, pelos caminhos da Sicília, da Ática e da Beócia, sem
jamais voltar a usar as malditas asas. Entretanto, sem que
percebesse, foi deixando cair, por entre frestas imperceptíveis de
seus novos inventos, migalhas de desproporção e ousadia que, mais
tarde, seriam fartamente usadas por outros heróis, como Ahab,
Quixote e Pantagruel.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
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