Anos mais tarde, o Posto das Lebres era
um dos mais caprichados campos da família Bueno. Lauro e Ana
fincaram raízes naquele fundão e não mediram esforços para
compensar a confiança do padrinho. Nem bem o rancho estava pronto,
veio ao mundo Miguelina, a primeira filha do casal. E logo seguiram,
em escadinha, os outros: Álvaro, Mariana, João e Laurinho. Com a
ajuda dos filhos, o casal fez com que o posto produzisse até mais do
que o esperado.
Miguelina, a mais velha, foi criada como
guri e trabalhava nas lides do campo tão bem quanto o pai e melhor
do que os irmãos. Aos doze anos, nem precisava da ajuda de ninguém
para revisar o gado e curar a terneirada. Ela era o orgulho do Lauro.
Independente da boa produção do posto,
a vida para a família estava cada vez mais difícil. A produção
era toda da família Bueno e o que tinham de seu mal dava para
alimentar todos que moravam por ali.
Alguns invernos depois, em um agosto
gelado como nunca se viu, nasceu o último rebento do casal. A
pequena Isa veio ao mundo magra e desacreditada. Os poucos que
visitaram a família já se iam pensando que voltariam em breve para
dar os pêsames pela morte da criança. Entretanto, mesmo com
dificuldades, a menina foi se criando e completou seu primeiro ano,
ainda que pálida e adoentada.
Num dia de vento forte e agourento, Lauro
Contreras perdeu o chão. Logo cedo recebeu um recado da estância
pedindo que corresse até a sede, pois seu padrinho estava muito mal
e solicitava a sua presença. Na carroça, guiada por Mariana, foram
as mulheres, exceto Miguelina, que seguiu a cavalo, junto com o pai e
os irmãos. A menina já devia ter seus dezesseis anos e despertava
olhares por onde passava.
Na chegada, Lauro cumprimentou as gentes
da Estância do Silêncio, cumprimentou a mãe na cozinha e subiu até
o quarto do padrinho. Aproximou-se da cama. Enxergar o velho
apequenado, moribundo, foi um choque. Segurou o pranto. O velho
Aparício, com os olhos cerrados, respirava com dificuldade, as
carnes frouxas da cara balançavam a cada expiração. Com as janelas
fechadas e apenas algumas velas acesas, o quarto cheirava mal.
Aparício da Silva Bueno abriu os olhos e reconheceu a si mesmo
naquele filho bastardo. Uma pena que aquela vida de aparências
fizera com que o menino nunca soubesse a verdade. Agora, pensou o
velho, agora já era tarde demais...
O velho morreu ainda naquela tarde. Horas
depois, Lauro caminhava tristemente do lado de fora das casas. Sentia
o forte cheiro de café e o aroma adocicado dos sonhos feitos por sua
mãe. Escutava o burburinho de lamentações, conversas fiadas e até
risadas veladas de alguns convivas, que apareciam apenas por
curiosidade. Definitivamente não se agradava daquele espetáculo.
Lauro escutou o passo arrastado e coxo do
velho Euleutério, o antigo capataz do Silêncio. Olhou para trás e
viu-o. Com os olhos vermelhos, escondido sob as golas do poncho de
lã, o homem parou do lado de Lauro. Não falou nada. Acendeu um
cigarro e ficou com os olhos perdidos no horizonte — sua farta
cabeleira branca dançava suavemente ao compasso do minuano. Deu um
tapinha nas costas de Lauro e seguiu seu rumo. Passaria uma vassoura
de chirca no galpão pela milésima vez no dia, tentando espantar os
pensamentos.
Após o enterro, Lauro e a família foram
convidados a ficar mais um dia na estância para ajudar no que fosse
preciso. Dona Amélia, com o rosto inchado do choro, estava cercada
pelas filhas e genros. Amanda, a mais velha das filhas, distribuía
ordens pela casa. Amélia pensou na filha que morava no Rio de
Janeiro — até hoje não aceitava aquela mudança — e estava
longe demais, alheia ao sofrimento da família. Quando a carta
chegasse às mãos de Rose, como sofreria a menina, coitada...
Lauro estava num canto da cozinha, o
rosto ainda úmido de lágrimas, quando sua mãe se aproximou:
— Toma esse mate, meu filho, e vai
limpar essa cara, que homem não chora. — disse Pitanga, alcançando
a cuia, com água fumegante, para que o filho sentasse os pés no
estribo da realidade novamente. Como uma criança, Lauro obedeceu sua
mãe sem pestanejar, limpando as lágrimas que insistiam em brotar. A
mulata, embora beirando os sessenta anos, ainda conservava a firmeza
ao caminhar e as formas do corpo de outrora — a idade não lhe
judiara como normalmente faz com os seres deste mundo.
Sentado na cadeira tosca, Lauro
recompôs-se e ficou a imaginar que fim levaria o posto onde morava
com sua família. Naquele momento, surgiu mais uma ruga em sua testa
queimada pela geada e pelo sol.
— Agora que já estás refeito, vai lá
conversar com a dona Amanda — disse Pitanga. — Ela tem uma
proposta pra ti. Aconselho que tu aceites, pelo bem da tua família.
Não esquece que tua mãe vai estar sempre aqui.
R. Tavares, in Andarilhos
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