segunda-feira, 30 de novembro de 2020

O gozo de criar

Uso um deformante para a voz.
Em mim funciona um forte encanto a tontos.
Sou capaz de inventar uma tarde a partir de
uma garça.
Sou capaz de inventar um lagarto a partir de
uma pedra.
Tenho um senso apurado de irresponsabilidades.
Não sei de tudo quase sempre quanto nunca.
Experimento o gozo de criar.
Experimento o gozo de Deus.
Faço vaginação com palavras até meu retrato aparecer.
Apareço de costas.
Preciso de atingir a escuridão com clareza.
Tenho de laspear verbo por verbo até alcançar
o meu aspro.
Palavras têm que adoecer de mim
para que se tornem mais saudáveis.
Vou sendo incorporado pelas formas
pelos cheiros pelo som pelas cores.
Deambulo aos esgarços.
Vou deixando pedaços de mim no cisco.
O cisco tem agora para mim uma importância
de Catedral.

Manoel de Barros

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