terça-feira, 3 de novembro de 2020

A morte do capataz Herculano

         Já se ia mais de uma semana que eles viajavam pelo pampa, e o calor daquele meio dia se fazia insuportável. O capataz Herculano, de idade avançada, estava com o corpo corroído de dor – mal sentia os pés e ainda suspeitava estar com febre. Herculano forçou as vistas em busca de uma aguada e de uma sombra, temia não poder continuar. Já trazia as rédeas frouxas nas mãos. “Esta será minha última tropeada, não venho mais”, pensava.
O velho, de repente, sentiu uma dor no peito e uma forte vertigem.
Socor... — tentou chamar os que estavam próximos, mas a voz não saiu de sua boca.
A luz do sol cegou-o momentaneamente, e suas mãos cansadas da viagem permitiram que a rédea lhe escapasse. Parecia que seus miolos queriam partir-lhe a cabeça, que latejava compassadamente. Tentou levar a mão ao coração. A dor foi lancinante; e a pressão, insuportável. Ele perdeu os sentidos. Na mesma hora, o cavalo que montava pisou na rédea e, assustado, disparou. O gado, ouriçado, fez menção de se apartar.
João Fôia viu o cavalo do capataz disparar. Percebendo a gravidade da situação, esporeou seu zaino e, a todo galope, tentou conter o animal que corria assustado. O velho Herculano caiu do cavalo e foi arrastado por muitos metros, pois seus pés ficaram presos ao estribo. Quando João conseguiu parar o animal, já era tarde demais – o antigo capataz da Estância da Província estava estirado no chão, sem vida.
Enquanto alguns peões controlavam o gado para evitar a debandada, os mais próximos do morto rezaram como sabiam e, com duas estacas de madeira e couro, improvisaram uma maca. Armênio, sota-capataz, mesmo em choque, teve de assumir a situação, uma vez que havia se tornado o responsável pela tropa. Destacou um dos homens de sua confiança e recomendou que levasse o corpo do capataz de volta para as casas.
E vê se não te extravias no caminho, se não hás de entregar o corpo do homem “abichado” pra dona Joaquina. — disse, antes de soltar um longo e agudo assobio chamando a tropa — Olha o caminho, boi...
João acompanhou a cena de longe. Não estava triste, pois não tinha qualquer apreço pelo capataz, mas estava assustado com sua premonição. Não gostava dessas coisas.
Ao décimo nono dia de tropeada, reconheceram, ao longe, a grande mangueira de pedra da Charqueada Santa Rita. Escutaram os latidos dos cachorros e puderam ver que a peonada da estância já estava encilhada, aguardando a chegada. O cheiro que sentiram era de podre, e moscas varejeiras zuniam em seus ouvidos. Podiam enxergar carcaças de animais jogadas num grande amontoado ao lado o rio de suas águas escuras e fedorentas. Sangue e restos de dejetos eram lançados todos os dias, sem trégua, nas suas correntezas.
Cinco cavaleiros se aproximaram para ajudar a conduzir o gado. Com destreza, após poucos minutos, deixaram os animais pastando no pequeno potreiro nos fundos da propriedade.
Finalmente, os tropeiros puderam descansar. O seu Armênio, com o semblante cansado e triste, estava a bebericar uma guampa com canha quando foi chamado por um senhor na entrada do galpão.
Esse senhor encarava a todos com olhar de reprovação. Tinha os olhos profundos e sérios, largas sobrancelhas pretas e unidas a contrastar com sua barba branca. A calvície era escondida por um elegante chapéu de feltro. Armênio acompanhou-o numa caminhada e foi mostrando-lhe o gado, explicando os acontecidos do trajeto. O velho balançava a cabeça e parecia concordar com o que o peão dizia. Aos poucos, sumiram das vistas de João Fôia.
Quem é aquele senhor? — indagou João pra um peão da charqueada.
Aquele é o Cel. Mariano da Cunha Guerra. Dono aqui da Santa Rita, da Bela Vista e de muitas outras terras — respondeu o outro, orgulhoso.
Parece ser um homem poderoso...
Por estas bandas, moço, o que o Cel. Mariano diz... é lei!
Naquela noite, pernoitaram no galpão da charqueada e, antes do amanhecer, os tropeiros retornaram para a Estância da Província. Foram todos, exceto João Fôia, que recebeu seu soldo e deu por cumprido o seu contrato com aqueles homens. Ficaria pelos arredores, pois sabia que gente como o Cel. Mariano Guerra costumava precisar de homens como ele. Fazia questão de estar por perto quando isso acontecia.
Depois de se despedir dos peões da charqueada e oferecer seus préstimos ao coronel, apertou bem o barbicacho, desabou ainda mais o chapéu e seguiu no rumo que eles indicaram. Escutava, ao longe, os latidos dos cachorros e o barulho dos homens trabalhando.
Êra boi... Êra boi…

R. Tavares, in Andarilhos

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