Os dias seguintes foram quentes e
arrastados. O princípio de primavera já estava com sol de verão.
Pedro estranhava o fato de não cruzar com viva alma desde que havia
entregado a tropilha. Porém, naquela manhã, forçou os olhos
oblíquos e negros e reconheceu os contornos de uma carreta
conhecida, atolada no passo de um arroio. Por causa disso, sorriu seu
sorriso de dentes grandes e brancos. Volta e meia, nas suas andanças,
encontrava o amigo mascate. Galopou ao seu encontro:
— Buenas, turco!
— Turco é o senhor seu pai e a senhora
sua mãe, andarilho desaforado! — respondeu Farid — Já expliquei
miles de vezes que não sou turco coisa nenhuma! Sou árabe! Á-RA-BE.
Só tem bicho burro que nem tu por estas bandas?
O mascate Farid deixou-se cair na risada.
Sempre entrava nas provocações do outro. Sabia que era por isso que
não cessavam. Pedro ria sobre seus arreios. Simpatizava com o árabe
desde que o conhecera empenhado em vender trajes para um casamento. O
estrangeiro tinha o dom de deixá-lo à vontade, sem a barreira que
ele impunha a todos que se aproximavam. Não sabia explicar o porquê
disso.
— Mas vosmecê vai apear e me ajudar
aqui ou vai ficar de risos como uma cozinheira aí em cima, guri
mal-educado?
Pedro saltou do cavalo e foi abraçar o
amigo. O velho Farid era um homem de uns cinquenta anos, mas ainda
tinha a farta cabeleira conservada, recém querendo acinzentar.
Ninguém sabia como havia parado no Continente, mas o certo é que
aquele homem baixo, de coloração acobreada e vasta barba, era
respeitado em quase todos os lugares. Quase todos, porque diziam que
tinha duas ou três mulheres por aí e que, depois que elas se
descobriram, foi um Deus-nos-acuda.
— Mas então, Farid, deu pra
desconhecer os passos que tem cruzada é? — provocou Pedro.
— Eu tenho bom olho, andarilho! Mas é
que deve ter chovido mais lá pra cima e a correnteza destruiu a
passada. Um tipo burro que nem tu não entenderia dessas coisas —
disse, aos risos. — Mas, então, vais me ajudar ou não?
— Vamos ver o que dá pra fazer —
respondeu Pedro, descalçando as botas e aproximando-se da carreta,
com água acima das canelas. — Muy difícil... — falava
baixo, espiando o mascate com o canto dos olhos.
Passou pela junta de bois que puxava o
carroção, foi correndo as mãos pela cobertura de couros de vaca,
pelos forros de palha das paredes, espiou a mercadoria dos negócios
do mascate. A carroça estava pesada, concluiu, abarrotada de
tecidos, fazendas, alguma prataria para a casa dos mais abastados,
espelhos e outras bugigangas que pudessem interessar às gentes
daquele fim de mundo.
Os pés descalços do andarilho
procuravam nas rodas da carreta o ponto em que estavam atoladas, uma
pedra que tivesse trancando o caminho ou algo do tipo. Sentia os
cardumes de pequenos lambaris a beliscar sua pele.
— Turco, conduz os bois ali na ponta
que só uma das rodas está presa — ele disse, por fim.
Mesmo contrariado, o árabe obedeceu.
— Vamos ter que esvaziar a carroça,
homem. Está muito pesada. Nem tracionando com o cavalo vamos
conseguir puxar.
Alheio ao aviso, Pedro continuou seus
planos. Guarany estalou os dedos das mãos, agarrou a roda e fez
muita força. Com o jogo do peso do próprio corpo, conseguiu
levantar um pouco o carro e ordenou para o outro: “Puxa a boiada!”.
O árabe tratou de puxar os animais, que deslocaram a carroça da
pedra que estava atrapalhando sua condução. Farid ficou
impressionado com a demonstração de força do amigo, mas nada
falou, já que conhecia o seu temperamento.
Depois de resgatarem a carroça, Farid e
Pedro foram conversar sob a copa das árvores. Penacho pastava solto
nas proximidades.
— Mas, me conta as novas, Farid. Não
pode que em todo esse tempo tu só tenhas três ou quatro causos pra
contar!
— Pois, vosmecê sabe, menino, que está
tudo calmo demais neste Rio Grande. Estou até estranhando. Se não
surgir uma guerra por agora, acho que os homens terminam por
enlouquecer!
— Mais cedo ou mais tarde tem guerra.
Disso não se há dúvida!
— Pois, é o que digo. Mas eu prefiro
essa paz. É bom pros negócios, sabe? As mulheres compram mais, os
homens estão trabalhando e com dinheiro. Depois, vem a guerra e
confiscam tudo e eu fico por aí, dormindo com um olho aberto e outro
fechado, mas com minha espada ao alcance do braço! — disse rindo.
— Que espada que nada, turco! —
provocou. — Estás velho demais para pelear! Quando muito, te
sobram forças pra sair correndo quando se aproxima algum perigo!
— Guri desaforado! Te mostro quem é
velho! — Farid indignou-se, pegou sua arma na carroça e saiu a
correr atrás do outro. Deram boas risadas naquela tarde. Acamparam
por ali mesmo, tomaram um trago de uma bebida que o andarilho não
fazia ideia qual era, assaram uma carne e descansaram da jornada.
No dia seguinte, logo cedo, cada um
seguiria o seu caminho. Farid disse estar levando umas encomendas
para um estancieiro e disse para o outro seguir mais ao sul, pois lá
teria trabalho. Um dia a trote curto e ele chegaria.
— Há um bolicho numa várzea linda.
Procura lá o seu Geraldo Muñoz e diz que fui eu quem te mandei lá.
Ele está precisando de um homem pra serviço braçal. Mas te apura,
guri, que ele mandou recado pra tudo que é lado e vai pegar o
primeiro que aparecer! — disse Farid antes de se despedir e seguir
caminho, puxando sua carreta com seus bois e toda sua mercadoria.
— Manda um saludo praquele
desgraçado! — gritou Farid já bem ao longe.
R. Tavares, in Andarilhos
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