sábado, 24 de outubro de 2020

O gesto supremo

       A baleia é um animal de poucos recursos. Mal pode se virar, quanto mais elaborar um conceito. A baleia leva dois anos para decifrar um sentimento. Às vezes confunde gases no estômago com a necessidade de definir uma cosmogonia, e aí vem para a tona, aflita. A baleia não se conhece.
A baleia é um mamífero que preferiu continuar no mar. Quer dizer, é uma sentimental. A baleia não tem mais ambiente no mar, falta-lhe o oxigênio, calor, faltam-lhe as mínimas condições de sobrevivência, mas ela preferiu não evoluir. É um animal conservador.
A família é tudo para a baleia. Os velhos valores.
Honra e serviço. Respeito e tradição. A baleia prefere não discutir o assunto.
A baleia não se conhece. A baleia sabe que tem uma cauda como você e eu sabemos que existe a Antártica. A cauda é um vasto território inexplorado para a baleia, remoto e misterioso como um pólo. O corpo é a angústia da baleia. A baleia vive atormentada pelo próprio tamanho. “Estou sendo seguida!” A baleia às vezes se pergunta, se eu não sou o meu corpo, o que é que eu sou? A baleia tem outra por dentro, bem menor.
Não é verdade que a baleia se alimenta de profetas. A baleia tem a maior boca do mundo e fome de canibal, mas uma garganta em que só passam canapés e as azeitonas menores. A baleia seria um desastre social.
A baleia é uma série de equívocos. Deus tinha acabado de fazer o elefante, estava numa fase de grandes projetos, mas se desinteressou na metade.
A baleia era para ser recolhida para reajustes. Mas aí veio a Idade do Gelo, depois Sodoma e Gomorra, depois o problema com o guri, e Deus não teve mais tempo.
A baleia leva anos para decifrar um ressentimento. O que começa como revolta no estômago chega ao cérebro como lamento e memória. Eu devia ter sido um monstro marinho, meu Deus, o flagelo da criação, Moby Dick só para vingar meu tamanho e meu destino. Mas a baleia mal pode se virar, quanto mais dominar o mundo. A baleia é uma desistência.
Os velhos valores. A rigidez moral. Como um adventista do sétimo dia — que também não come carne — a baleia está convicta da corrupção do mundo e da sua própria indignidade. (Todo vegetariano é um canibal contrito.) A baleia conhece a humanidade pelos seus náufragos e pelo que lê nos jornais. Seu único contato com o homem é o arpão nas costas e notícias de escândalos. A baleia sabe histórias, de transatlânticos afundados, de alta luxúria em camarotes, de tráfico de ossos em sombrios porões da segunda, de inomináveis congressos entre caveiras e polvos, de capitães bêbados e gentis-homens piratas. A baleia às vezes se pergunta, se eu não sou digna, quem pode ser?
Houve o caso de uma baleia que se apaixonou por um submarino alemão e até hoje carrega as marcas do escândalo, uma cauda torta e o olhar perdido. A baleia tem uma visão trágica do mundo.
Um grupo de baleias soube das fotos da Jacqueline e, sem pensar — o que levaria muito tempo —decidiu-se pelo gesto supremo. A baleia é uma personalidade suicida, a intransigência moral só agravou o processo. Mataram-se para nos salvar. Na costa do Rio Grande do Sul para sensibilizar o Correio do Povo.

Luís Fernando Veríssimo, in A grande mulher nua

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