“Os que nascem com mais sabedoria e mais amor à virtude do que os outros devem se tornar brâmanes”, dizem os Vedas. Se compreendermos “sabedoria” como um conhecimento de tudo o que é humano fundamentado em contemplação interior e em devotada experiência, conhecimento este supervisionado e estimulado por um prazer apaixonado pela expressão designadora, um desejo de aventura e maestria no campo da palavra sofisticados, sedentos de estímulos, sempre insaciáveis, sempre em busca de novas conquistas; e se compreendermos como “amor à virtude” a pureza do contemplador, o desejo do incondicional, o asco à concessão e à corrupção, uma insistência irônica ou solenemente acusadora e julgadora no plano ideal, na liberdade, na justiça, na razão, na bondade e na dignidade humana: nesse caso, essa definição do talento dos brâmanes consegue expressar na fórmula mais breve possível a vocação literária.
O século XVII, o século literário por excelência, gostava de diferenciar entre o “sábio” – uma natureza seca e rabugenta – e o “filósofo”, e parece que com este último conceito queria dizer mais ou menos o que hoje compreendemos por “literato”. As diferenças entre as épocas, no entanto, são relevantes, e o conceito atual do literato se equipara menos ainda ao do lettré , do erudito, que o do filósofo de então. Exclua-se tudo o que diz respeito à formação acadêmica. Flibusteiro intelectual com tipos muito diferentes de formação científica, muitas vezes desprovido de diploma, de academia, de exames, demasiadamente libertino, sonhador, homem que vive a vida, demasiadamente artista para resolver coisas práticas, mas divorciado da arte no sentido ingênuo e inocente pela consciência, pelo espírito, pelo moralismo, pela crítica, o literato talvez possa ser designado com mais perfeição como artista da cognição.
Mas quem quiser lançar a pergunta sobre qual impulso – se o artístico ou o moral – se não predomina pelo menos é o primário e originário nesse curioso tipo (uma questão que aqui já foi tangenciada com o cuidado necessário), arriscará trazer para o centro do debate o problema da própria arte, o qual, em sua condição de problema, nunca deixará de escandalizar a humanidade objetiva enquanto ela estiver envolvida com o dualismo de forma e conteúdo e enquanto a palavra “forma” inevitavelmente fizer ressoar o conceito da frivolidade e da falta de seriedade. Forma na qualidade de frivolidade: nesse juízo ou preconceito, que eu não combaterei e que até pode conter muita verdade subjetiva, efetivamente baseia-se toda a desconfiança, descrença com que o cidadão, ou seja, o homem subjetivo, enfrenta o literato em qualquer área prática, por exemplo a área da política; e há casos em que um literato entende que se expressou com devoção e paixão sobre alguma complicação ou o problema de um amigo, recebendo a amarga resposta de que sua contribuição até pode ser um belo tratado estético, mas não serve de conselho nem de consolo. Não se costuma acreditar, no mundo, naquilo que é bem dito. Ao contrário, o cidadão comum acredita apenas em uma seriedade sem forma, em uma moral nua e crua; a ele, virtude com senso estético parece uma desfaçatez blasfema – e a firmeza de sua convicção lhe dá razão. Mesmo assim, Schiller dedicou-lhe eloquentemente seu pensamento mais caro e entusiasmado, o da relação entre arte e moral, entre estética e ética. Mesmo assim, em um poema famoso, Goethe juntou a boa ação e a bela palavra… A boa ação! Nada é mais característico para a vocação literária do que a eficácia dupla e, no fundo, unitária, daqueles paladinos filantrópicos da época do Iluminismo que em escritos sobre política criminal convocaram a sociedade perante o fórum da humanidade, educaram seus contemporâneos a repudiar as selvagerias da Justiça, a tortura e a pena de morte, prepararam o caminho para leis mais suaves – e que, tipicamente, notabilizaram-se através de ensaios sobre linguagem e estilo, tratados sobre a arte da escrita. Filantropia e arte de escrever como paixões predominantes de uma alma: isso quer dizer alguma coisa; e é relevante também que o conceito de barbárie abranja todo o conjunto do que se imagina como sendo falta de cultura, ignorância, vilania, crueldade e ausência de bom gosto. Escrever bem significa quase pensar bem, e daí à boa ação é um passo. É bom constatar que todo processo civilizatório, todo enobrecimento moral e melhoramento do gênero humano origina-se do espírito da literatura, e para os pedagogos populares dos antigos a bela palavra já era vista como produtora da boa ação.
Tudo isso deve ser mencionado a título de atenuação, antes de expressarmos a hipótese de que de fato é na palavra que se deve encontrar a origem e o impulso primevo do literato, que aquele desejo de aventura e maestria no reino da expressão – o qual talvez seja não apenas um efeito colateral ou consequência de sua “sabedoria”, de seu conhecimento psicológico, e sim sua origem – possivelmente também poderia ser a de seu “amor à virtude”. Sim, a palavra, que está ali, que pertence a todos e que apenas ele consegue manejar de modo soberano e brilhante, a palavra é seu primeiro espanto, seu prazer mais precoce, seu orgulho infantil, o objeto de seus exercícios secretos e dos seus exercícios não autorizados, a fonte de sua superioridade vaga e estranha, ela é o seu talento… Mas em cada talento há, inato, o anseio pelas melhores e mais vantajosas condições de desenvolvimento, e, por natureza, quanto mais forte se sentir algo baixo, lúdico e ridiculamente engraçado, com maior ambição ele tentará se levar a sério, solenemente, elevando seus efeitos para a dimensão da dignidade e da bondade. Essa é a moralidade do talento que se manifesta em numerosas vidas de artistas e, da maneira mais admirável, talvez, em alguns casos isolados da esfera literária.
O literato, portanto, é duplamente moralista: é um conhecedor da alma e um juiz dos costumes, e é as duas coisas pela sua condição de artista. Seu impulso artístico faz dele um psicólogo, pois onde o seu talento e sua sofisticação linguística e curiosidade poderiam encontrar satisfação mais preciosa, onde seu virtuosismo expressivo poderia encontrar missões mais seletas, difíceis, sublimes, do que nas confusões do coração humano? Não que ele se expresse depois de ter vivenciado e reconhecido, essa seria mais a condição do poeta. O literato se expressa ao vivenciar; ele vivencia ao se expressar, e ele vivencia para se expressar.
Mas por outro lado é do seu talento que se origina sua paixão ética. A pureza e a postura nobre do seu estilo se refletem (provavelmente não é o contrário) em sua visão e percepção das coisas humanas, sociais e do Estado. Ele é radical porque o radicalismo, para ele, significa pureza, magnanimidade e profundidade. Detesta a imperfeição, a covardia lógica, o compromisso; vive em protesto contra a degradação da ideia pela realidade. Seu senso estético, seu idealismo de artista lhe proporciona o gesto interno da generosidade, com a qual ele protege o que é honrado do que é útil. É Montaigne que cito aqui, e aquele tratado espantoso em que compara esses dois valores. Em toda constituição de Estado, diz, existem serviços úteis, necessários, mas que também são vis, até mesmo viciosos, e se a necessidade comum apaga o seu verdadeiro rosto devemos deixar esse papel aos cidadãos que têm mais nervos e menos temor. O bem comum, segundo ele, exige que se traia, que se minta, que se derrame sangue, mas “deixemos essa tarefa àqueles que são mais obedientes e maleáveis”, diz Montaigne. Mais do que quem? Do que ele, o literato, excessivamente nervoso e temeroso, demasiado rebelde e rígido para sacrificar o que é honrado ao que é útil.
Montaigne fica fora de si com o juiz que, através do engano e de falsas promessas de brandura ou clemência, seduz o criminoso a revelar seus atos. Chega a afirmar que o cidadão capturado por ladrões e libertado após prometer pagar uma determinada soma é obrigado a manter sua promessa – pois, ainda que o pavor tenha forçado a sua língua sem vontade, continua obrigado a manter sua palavra, mesmo sem o temor. E qual a origem da sensibilidade de Montaigne no quesito da honradez? Vem do mesmo gosto que o faz eleger Epaminondas como seu herói: aquele guerreiro humano tão afeito aos costumes amenos e educados que, topando com o amigo e hóspede em meio à situação mais enfurecida, desviou-se educadamente para o lado, e do qual se diz que, antes de sair para a guerra, levava um sacrifício às musas a fim de, com sua suavidade e alegria, livrar Marte da crueza e da raiva. Bem – tudo isso é literatura! Se a vida é uma luta, o literato é o guerreiro que, antes da batalha, leva um sacrifício às musas.
Seria possível supor a que exemplo o literato da Renascença recorre para questionar moralmente aquilo que é útil? “O casamento”, diz ele, “é o laço mais necessário e útil da sociedade humana. No entanto, o conselho dos santos considera o celibato a decisão mais correta e exclui do casamento a profissão humana mais honrada, da mesma forma que usamos os animais inferiores para o cruzamento das raças.” Que exemplo forte! Ao que parece, o literato se entende melhor com o santo do que com o seu oposto, o artista, e se o seu moralismo tem origem artística, são precisamente seus impulsos de conhecimento e julgamento que o distanciam do artista como nós o imaginamos – esse ser alegre e inocente que enfrenta o irmão severo, ou até prefere nem enfrentar, com um misto de contrariedade e pia timidez.
O artista – considerando-se aqui o tipo da forma tão pura quanto o literato – é eticamente indiferente, irresponsável e ingênuo como a natureza, da qual é filho legítimo. De feitio criativo sem ser contemplativo, e sim ativo, e, enquanto homem de realização acostumado a fazer concessões à matéria, nem imagina perceber como opostos o honrado e o útil. Um rapaz que vive e deixa viver, sensual, infantil, dado ao jogo, ao brilho e às festas, deixa a quem tiver vontade julgar o mundo de Deus, o qual ele se satisfaz em ornamentar e recriar. É conhecido como mestre da alegria nas cortes dos grandes, comensal despreocupado à mesa do canalha rico – em resumo, se algum traço de caráter positivo falta a esse simpático camarada é a honradez, que não é em absoluto questão de natureza e de “temperamento”, e sim de conhecimento e de crítica. Já o literato, por sua vez, é a pessoa essencialmente honrada, e não consegue deixar de sê-lo. Sua aversão a se vincular, comprometer-se, a se tornar comum – ele, o livre observador e juiz –, simplesmente uma demanda da autoafirmação, vence sem qualquer esforço todas as tentações do mundo. Seu pathos de liberdade, seus conceitos de dignidade humana, sua insubordinação o fazem aparentemente inadequado para servir aos príncipes. Sua visão social o tornaria cúmplice do explorador mão-aberta em cuja casa se hospedasse. E enquanto o artista é propriamente o homem do efeito e do sucesso, o literato não vê o sucesso como quase nada além de ornamento da injustiça – sim, a sua irritabilidade psicológica e ética torna-o, enquanto ser contemplativo, rancoroso contra a atividade em si, contra a atividade criadora que se adapta praticamente. O ódio que Voltaire tinha de Carlos Magno é um excelente exemplo dessa sensibilidade do literato em relação ao heroísmo impuro da ação. “O nome de Carlos”, exclama ele, amargurado, “é uma das maiores provas de que o sucesso redime a injustiça e conduz à fama.” Em seguida mostra, sorrindo e babando, o que é a grandeza ativa. Carlos não respeitou os direitos da natureza e os laços do sangue. Lançou na miséria a mulher do irmão e seus filhos a fim de se apoderar de suas terras. Provavelmente, mais tarde os enviou para o convento ou mandou matá-los. Obedecendo a uma demanda do papa, degredou sua esposa langobarda sem motivo e sem formalidade, mandando prender o seu pai e outros príncipes. Tratou a guerra libertária de Wittekind como uma revolta comum e mandou executar 4.500 presos às margens do rio Aller. Escravizou os saxões sob o pretexto de querer cristianizá-los e aliou-se – ele próprio um cristão – aos sarracenos contra outros sarracenos, sem pensar em querer converter seus aliados ao cristianismo. “Outros interesses, outros atos!”, grita Voltaire. E vemos que precisamente isso, a renegação desavergonhada daquilo que é honrado em prol do que é útil, é-lhe insuportável. Um homem prático sagaz que de forma alguma quis se vingar de Roncesval, mas que sempre se apoderava apenas do que podia carregar, “adequando sua ambição ao favor ou ao desfavor das circunstâncias”. Um hipócrita que, depois de corromper a nobreza romana com ouro e ter se candidatado oficialmente ao cargo de imperador, fingiu surpresa quando o papa Leão o declarou imperador durante a missa, num jogo encenado. Um ladrão esperto, em suma, ao qual apenas o sucesso e – como Voltaire acrescenta com maliciosa equidade – “algumas propriedades brilhantes” concederam o atributo de grande homem: este é o herói histórico diante da cadeira do juiz da pura contemplação, e quem achar absurdo tal juízo deve considerar que o absurdo não é outra coisa senão a honradez espiritual.
O literato é correto até as raias do absurdo, é honrado até as raias da santidade; sim, parente dos profetas da velha aliança enquanto conhecedor e juiz, efetivamente representa o tipo do santo mais evoluído com mais perfeição do que qualquer anacoreta de tempos mais primitivos. Seu senso estético, sua sensibilidade contra o que é vil, ridículo e indigno leva ao aniquilamento de todas as paixões baixas: a maldade, a inveja, a prepotência, o desejo de vingança, o ciúme; sua arte de fragmentar e designar, o efeito refrescante da palavra literária leva à dissolução e à conciliação da paixão propriamente dita, leva à mansidão, à calma. Sim, se desde o nascimento ele é um juiz, com a vocação e a missão de atribuir às coisas os nomes certeiros, trata-se, em última análise, de sua “sabedoria”, que se revela mais forte do que o seu “amor à virtude”: conhecer o coração, saber da multiplicidade de significados e da profunda injulgabilidade das ações humanas faz com que ele compreenda, com que perdoe, o conduz à bondade…
Thomas Mann, in Travessia marítima com Dom Quixote – Ensaios sobre homens e artistas
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