quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Belos dentes e bom coração

          Ouvi dizer que há pessoas que riem para mostrar seus belos dentes e outras que choram para mostrar que têm bom coração. Em todas as minhas fotos, M. está rindo, mas não como certas grã-finas nas colunas sociais. Essas peruas sempre aparecem com os dentes à mostra, mas nunca estão realmente rindo, estão olhando para a lente da máquina, pensando no que as amigas vão dizer quando virem sua foto publicada, fingindo que riem, e quando o fotógrafo se afasta, elas mostram um rosto acabrunhado, às vezes aflito. Já andei nas festas e sei o que estou dizendo. Os que riem de verdade, como os que estão apaixonados, não têm a menor noção do que acontece em torno deles, não veem nada em volta. Um fotógrafo tirando fotografias, por exemplo. Rir é bom, mas pode foder a vida de uma pessoa.
M., quando chorou, assoou o nariz, talvez porque seja assim que as mocinhas choram nos filmes: começam a chorar e o galã, ou outro homem qualquer, nunca outra mulher, tira um lenço do bolso, os homens carregam sempre um lenço limpo no bolso, dá a ela e a mocinha limpa o nariz. Claro que há uma justificativa fisiológica para isso, a lágrima, além de umedecer a conjuntiva, pode penetrar nas fossas nasais. No dia em que M. chorou, o cara que estava com ela não tinha lenço no bolso, ou talvez o lenço dele não estivesse limpo, aliás, se o sujeito carrega um lenço no bolso da calça é para sujá-lo, a menos que o cara esteja trabalhando num filme. Ele deu a gravata para M. e ela assoou na gravata. Mas estou pondo o carro adiante dos bois. Vamos pela ordem.
Alguém me avisava quando M. saía de casa. Eu fazia o meu trabalho sem pressa, de maneira discreta, como manda o figurino. Minha missão era descobrir se ela estava se encontrando com algum homem.
Acampanava M. havia quatro dias quando vi pela primeira vez os dois juntos, no centro da cidade, no balcão de um desses lugares que só servem café expresso. Estavam tranquilos, tomar cafezinho é uma coisa inocente, ainda mais em pé, num balcão. Riam muito, ela mais ainda, um riso alegre mas quase silencioso, sem tirar os olhos do homem que estava com ela. M. estava apaixonada.
O segundo encontro foi num restaurante japonês que ficava num sobrado do centro. M. comeu com os pauzinhos, isso me irrita, quem tem que comer com pauzinho é japonês. O cara usou garfo e faca. Houve um momento em que ele pegou na mão de M. e os dois ficaram calados durante algum tempo. Eles se despediram na porta do restaurante.
O terceiro encontro foi novamente no lugar que só servia café expresso. Eles estavam sérios e tensos, o cara tomou duas xícaras de expresso e M. três, antes de se decidirem.

Os dois não eram muito espertos, saíram quase ao mesmo tempo do café, andando na mesma direção, o homem na frente a uns cinco metros de distância. O centro da cidade é o melhor lugar para encontros furtivos, tem uma profusão de prédios mistos, com escritórios, consultórios e residências, às vezes no mesmo andar. E as ruas estão sempre cheias de pessoas de todos os tipos se movimentando de um lado para o outro.
Quando o homem entrou num prédio eu me apressei, passei por M. e ainda deu tempo de entrar com o cara no elevador. Um novato escolheria a mulher, mas nesses casos é melhor grudar no homem, a mulher nessas situações está sempre escabreada, desconfiando dos outros. Os marmanjos não dão bola para os estranhos que estão no elevador com eles, ainda mais os que usam paletó e gravata, como o cara que eu seguia, que provavelmente trabalhava num prédio da cidade e andava num elevador lotado todos os dias. Fiquei ao seu lado e o cara nem olhou para mim, nem mesmo quando saltamos juntos.
Caminhou pelo corredor e abriu a porta do 1.618. Não esperei M. chegar, peguei um elevador que descia, fui para minha casa, tomei um comprimido de vitamina C e deitei. Estava com um vírus que causava dores pelo corpo todo. O telefone tocou, mas deixei a secretária eletrônica atender. Mais tarde chequei quem era. Ouvi o recado curto do cliente dizendo que queria falar comigo. Liguei para o número de celular que ele me dera.
Alguma novidade? perguntou.
Nada, respondi.
Nada, nada, como nada? Ela passou a tarde fora.
Estava no shopping.
Mas não fez compras? Chegou de mãos vazias.
As mulheres gostam de olhar as vitrines, eu disse.
Me garantiram que você era o melhor, que posso confiar em você.
Eu sou o melhor, pode confiar.
Não larga ela um minuto.
Pode deixar, mas vou precisar de grana para fazer umas instalações.
Que instalações?
Coisas do trabalho.
Já lhe disse que dinheiro não é problema. Pede ao dr. Gilberto.
O dr. Gilberto era um sujeito gordo, como são esses advogados que ganham muito dinheiro. O escritório dele era na avenida Rio Branco. Demorou meia hora para me atender. Eu disse a quantia e ele me deu um cheque, sem discutir. Assinei o recibo e fui embora. Comprei o material no Serginho, que fazia contrabando de tralha eletrônica. Era bagulho de alta tecnologia, tudo coube na bolsa que eu carregava a tiracolo.
Abrir a porta do 1618 foi uma sopa. Examinei cuidadosamente a sala, o quarto e o banheiro. Na sala havia um equipamento de som, uma geladeira pequena, um sofá e duas poltronas. Dentro da geladeira, várias garrafas de água mineral gasosa. No quarto, uma cama, uma mesinha de cabeceira. Na parede estava dependurada a pintura de uma mulher pelada em cima de uma concha. Os lençóis da cama eram de linho e estavam limpos, como se não tivessem sido usados. Uma faxineira devia limpar o lugar, o banheiro tinha cheiro de produtos de limpeza, eu devia ter sacado isso, uma falha burra. Liguei o equipamento de som, vi como funcionava, depois desliguei, abri a caixa do amplificador e tirei um transístor. Aquela merda podia me causar problemas, namorados gostam de ouvir música juntos, isso atrapalharia a minha gravação. Depois coloquei dentro da caixa de som o pequeno gravador. Segundo Serginho, qualquer som ambiente, por menor que fosse, ativaria o bicho. Testei o gravador. Uma maravilha, esses caras inventam coisas do arco da velha.
Meu corpo continuava doendo, a vitamina C não estava adiantando muito.
No dia seguinte dei plantão no andar do prédio onde os dois pombinhos se encontravam. Se a faxineira viesse eu ia ter que entrar logo depois de ela sair e checar se a fita não tinha sido desperdiçada com barulhos que ela faria limpando as coisas, a capacidade do aparelho era de quatro horas, conforme o Serginho, mas a faxineira podia ser preguiçosa.
Mas quem chegou foi o cara. Dei o fora antes de M. aparecer. Fui procurar um lugar para tomar um suco de caju, dizem que caju tem muita vitamina C. Depois fiquei em frente ao prédio esperando eles saírem. Ficaram lá umas três horas. Saíram juntos. Foi nesse dia que ela chorou e assoou o nariz na gravata dele. Eles se separaram, seguindo em direções diferentes.
Voltei ao prédio, entrei no 1618, abri a caixa de som, tirei o gravador e fui para casa ouvir a fita.
Não vou contar tudo o que ouvi, as palavras e gemidos das pessoas que fazem amor não são novidade e ninguém deve meter o bedelho nisso. Eles estavam se vestindo, os sons sugeriam isso, quando M. disse:
Eu não vou mais te ver, estou me sentindo culpada, não durmo, não posso viver assim, essa vida dupla.
Isso também não é novidade, toda mulher casada que tem um caso cedo ou tarde acaba dizendo essa frase.
Vamos viver juntos, a voz do homem.
Ele precisa de mim, voz de M.
Eu também preciso de você.
Você é um homem saudável, ele tem aquele problema. É melhor não nos vermos mais.
Os dois amantes conversaram muito, mas não vou contar mais nada.
Liguei para o celular do cliente.
Ela não se encontra com homem nenhum, eu disse, acho que podemos encerrar a investigação.
Mais quinze dias, disse o cliente.
Tudo bem, respondi.
Nesses quinze dias fiquei em casa descansando e me curei da virose.
Voltei a ligar para o cliente.
O senhor não precisa de mim, dona M. não se encontra com nenhum homem.
Podemos encerrar? O senhor me garante que podemos encerrar?
Garanto.
Tive a impressão de ter ouvido um suspiro abafado.
Pega o resto do pagamento com o dr. Gilberto. Não me telefone mais.
Desliguei o telefone e fiquei pensando em M., na foto que não fizera dela, assoando o nariz na gravata do namorado, chorando porque estavam dizendo adeus e porque, além de belos dentes, M. tinha também um bom coração.

Rubem Fonseca, in Secreções, Excreções e Desatinos 

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